O Monge de Cister: Tomo I XII - VILÃOS NÓS: RUINS VÓS!
Dizem alguns fidallguos que elles nom conhecem outro rrey em ssua terra ssenon a ssii.
CORTES DE LISBOA DE 1456, Cap. 9.
As ágeis mãos do roliço besteiro tinham, enfim, feito desaparecer de cima da mesa os restos da mais sóbria que abstémia colação nocturna.
Depois, entre o correr e tombar dos dados o ouro rolara profusamente. Aproximava-se o quarto de alva, e ainda três vultos agrupados junto à cabeceira da távola disputavam o favor do acaso, que parecia teimoso em proteger um deles exclusivamente.
Eram o conde de Seia, o prior do Hospital ou de S. João e o licenciado Asinipes, e este o mimoso da fortuna.
Os outros jogadores haviam-se enfim alevantado pouco a pouco, e de pé e em circulo, para o lado oposto do vasto aposento, pareciam entregues a disputa desordenada e violenta.
A turbação dos ânimos causada, senão pela embriaguez, ao menos pelo quase delírio que a semelha e precede, não fizera esquecer aos useiros e vezeiros da tavolagem o númen a quem esse lugar era especialmente consagrado, númen a cujo culto, fatal para tantos, apenas punham frágil barreira as severas cominações das leis do reino contra um dos vícios mais radicados naquela época. Assim, a maior parte da noite passara na luta ardente de jogo desenfreado.
Esses montes de ouro e prata que haviam mais de uma vez mudado de dono, conforme os caprichos da sorte e no meio das facécias e pragas, das contestações violentas e até das injúrias e ameaças, fazendo subir do coração às faces rubras, aos olhos irritados e aos lábios trémulos o lodo das paix3es hediondas que lá dormitavam, eram o fruto de uma alquimia mais verdadeira do que essoutra que naqueles tempos se acreditava ser apanágio dos adeptos da ciência hermética. Eram os vis reais, pojeias e mealhas do povo, condensados e transmudados nos metais preciosos de boa e nobre moeda, que rolavam na grande mesa de castanho, agora convertida em mesa de jogo ou távola.
Dissemos os vis reais, pojeias e mealhas do povo. De feito, no decurso de dois para três séculos uma grande revolução se operara no sistema da fazenda pública de Portugal. Em virtude dessa revolução, enquanto o rei e os conselhos, empobrecidos pelos males da guerra, se debatiam na miséria, as classes privilegiadas achavam ainda recursos para a devassidão e para o luxo, sem empenharem inteiramente nas mãos dos judeus as rendas das suas honras e solares.
O Estado, que, nos primeiros tempos da monarquia, copiara na sua organização económica o modelo que lhe oferecia a família; isto é, que vivera do produto das suas propriedades, dos frutos das terras chamadas então regalengas e das rendas e foragens a troco das quais cedera os terrenos onde não só se fundavam grandes povoações, mas também se estabeleciam os herdamentos, as aldeias, e até as pequenas arroteias, desbaratara gradualmente este rico património. Os reis tinham ido distribuindo essas granjearias, destinadas a alimentar a vida colectiva da sociedade, pelos seus ricos homens, pelos seus infanç8es e pelos seus validos; pelos seus bispos, pelas suas catedrais e pelos seus mosteiros. D. Fernando, cujo carácter foi um misto singular de grande príncipe e de grande mentecapto, esgotara os derradeiros estilicídios que manavam das antigas fontes do rendimento público, e a nobreza respigara até o último grão o que restava da recolhida seara. O Estado continuava, todavia, a achar com que suprir as suas necessidades, porque, ao passo que as primitivas contribuições, sem deixarem de subsistir para os contribuintes, cessavam para os cofres públicos, os célebres pedidos de cortes iam lentamente habituando o rebanho popular a uma dupla tosquia, tratamento que, seja dito de passagem, os alveitares políticos sempre acharam altamente higiénico e salutar.
O sistema das contribuições gerais, que se estabeleceu e caracterizou definitivamente nas sisas de D. João I, recebeu depois, nos séculos que mediaram até nós, o seu inteiro desenvolvimento, enquanto as rendas, ou tributos locais, convertidos em património nobiliário, apesar dos mais solenes e repetidos protestos feitos em cortes contra essa espoliação flagrante, continuaram a ficar enraizados no solo português com uma vida admiravelmente tenaz. Veio, enfim, neste nosso tempo, um príncipe que, convertendo em charrua a sua espada de soldado, arrancou pela raiz esse esterilizador escalracho. Quando, porém, viram morto o terrível lavrador; quando estiveram bem certos de que os seus restos eram cinza que nenhum sopro de vida reanimaria jamais, agarraram todos os tronquinhos dispersos da planta maldita, espalharam-nos de novo pelos campos da pátria, apiedaram-nos, regaram-nos, cofiaram-nos e, qualificando de revolucionário o grande acto de justiça nacional, a lavagem que o herói fizera no estábulo de Augias, apelidaram-no de salteador. Faltou atirarem-lhe as cinzas ao mar. Depois alevantou-se a ignorância jurisperita, o molinismo político, a erudição bastarda e disseram ao povo: «O escalracho incomoda-te? Bom remédio. Arranca-o. Mas paga primeiro a faculdade de o arrancar. É uma bagatela: apenas pouco mais de três quartos do valor dessa terra, que regas com o teu suor e que libertaste com o teu sangue.» E os agricultores lá vão vendendo a camisa para poderem livrar-se da planta daninha. Abençoados sejam eles e os que souberam conhecer-lhes a índole para a explorar!
Era, pois, o produto dos terradegos, chavadegos e maninhadegos, das osas, gaiosas e lutuosas, das eiras, angueiras, perangueiras, carreiras e fossadeiras e dos mais foros, direituras e costumagens em adegos, em osas, em eiras e em todas as terminações possíveis de rapina legal e tradicional que se jogava na tavolagem das Portas do Mar. Aquele atractivo divertimento fizera voar as horas. De quando em quando, a voz estridente do galo anunciava a proximidade do dia, bem como a indicava o amortecer das lâmpadas que alumiavam a vasta quadra.
Segundo dissemos, o prior-marechal, o conde de Seia e o procurador de Celorico, atentos aos pontos que marcavam os pequenos cubos de marfim, pareciam esquecidos de tudo o que os rodeava.
Não era assim: D. Henrique preparava o golpe que lhe havia dar a glória de vencedor na aposta que fizera, e ao mesmo tempo as vantagens mais positivas de ganhar uma avultada soma e de conhecer definitivamente as odiosas pretensões populares.
De acordo com o prior de S. João, o conde seguira o método inverso dos jogadores professos. Ambos eles o eram: sabiam a tempo repelir a fortuna ou atá-la ao seu carro triunfal. Fazendo vacilar a sorte a princípio, começaram a ceder a vitória quando viram o licenciado assaz engolfado no jogo para que o seu coração se dilatasse no delicioso enlevo de ilimitada felicidade. De oitos fitos nas boas dobras que os dados, pintando a flux, iam passando para diante dele, o honrado burguês nem sequer ouvia o ruído das falas que soava do lado oposto do aposento.
E, todavia, o objecto da conversação era assaz importante!
D. João de Ornelas tinha provado naquela noite ao seu silencioso companheiro, que, assentado a um canto, parecia entregue a uma habitual sonolência, quão útil aliado era para obterem os fins que ambos se propunham. Como o destro capinha, que, sem acometer de frente o bravo novilho, falseando-lhe as arremetidas, o fere de soslaio, e, obrigando-o a inúteis esforços, o cansa, irrita e desespera, até o fazer cair exausto e vencido pelo próprio furor, assim o diabólico frade, excitando os ânimos, ora com a contradição indirecta, ora com ironias pungentes, ora com capciosos conselhos envoltos em reflexões austeras, levara os cavaleiros menos prudentes e sobretudo o homem que ele jurara perder, o jovem valido do rei, a manifestarem intentos e esperanças que, habilmente interpretados, se poderiam tachar, não só de violência, mas até de deslealdade. Fernando Afonso não se contentara de invectivar contra os ministros de D. João I: aprovara os queixumes dos fidalgos contra o próprio monarca e a resolução que muitos manifestavam sem rebuço de se recusarem a servir na guerra, se os resultados das próximas cortes fossem novas quebras de seus privilégios. Mais de um exemplo anterior autorizava a crer que nesta ameaçada recusa se continha a ideia de irem pôr as suas lanças ao serviço de D. Beatriz de Castela.
Foi então que, a um aceno do conde de Seia, o prior de S. João, observando que era alta noite e que ninguém mais se via ao redor da távola, propôs que terminassem o jogo, e, com mágoa do tão feliz procurador, se alevantou para ir reunir-se ao grupo que altercava na oposta extremidade da quadra.
A sós com o licenciado, D. Henrique começou a falar em voz baixa. Depois de entreter a sua vitima com vários objectos insignificantes, conduziu a conversação de modo que veio a tocar na circunstância que fizera com que o muito honrado doutor Mem Bugalho se achasse de um modo inopinado naquele lugar, aquelas horas e em tão estranha companhia. Lamentava-se de que as cousas tivessem corrido de modo que lhe não fosse lícito aproveitar-se das provas de confiança que ele lhe dera, querendo comunicar-lhe os capítulos populares, acerca dos quais tantos boatos contraditórios se espalhavam: acusava-se de não ter reflectido em que podia encontrar na tavolagem aqueles estafermos nem na possibilidade de eles se demorarem ali quase até a madrugada: sentia ter ajustado com o marechal partirem ao romper da manhã para uma caçada nas terras da Flor da Rosa, onde se deviam demorar uma ou duas semanas: deplorava a impossibilidade em que se via de ouvir aquela leitura, a qual, a confessar a verdade inteira, posto que o fizesse com o sacrifício de nobre e legítimo orgulho, não lhe era de todo indiferente; mas que não ousaria exigir dele que cumprisse diante de tantos cavaleiros, a muitos dos quais tratava pela primeira vez, a promessa que lhe fizera, posto que ele conde de Seia pudesse responder, como pela sua própria, pela lealdade e circunspecção de todos e de cada um em particular: protestava, finalmente, que guardaria em perpétua lembrança o novo testemunho que recebera da mais pura e generosa amizade.
As palavras do conde haviam sido tão insinuantes e lisonjeiras, o ouro que o ilustre Mater-Galla tinha ante si molificara tanto o seu coração naturalmente bondoso, e, semelhante ao espinho do remorso na consciência do criminoso, a ideia de poder algum dia ser elevado ao cargo de chanceler por influência da nobreza era tão viva e perene na sua alma, que, depois de cismar alguns momentos, exclamou, como arrastado por inspiração irresistível:
– E porque não os ouvireis agora? Quisera que dependesse de mim cousa de maior preço para vós e em geral para a fidalguia...
Ah, Mater-Galla, Mater-Galla! O demónio da ambição tinha-te catrafilado! Despenhavas-te no abismo!
– Perdestes a vossa aposta – disse o prior, que entrara na roda dos que altercavam; o prior que, ouvido numa parte, ouvido noutra, percebera a exclamação do burguês.
Estas palavras dirigiam-se ao mestre de Christus, ao senhor de Resende e a Gonçalo Vasques, que eram os da aposta com o conde de Seia.
– Como assim? – replicou D. Lopo Dias.
– É quase madrugada; vamos partir, e o vilão ainda não disse uma palavra. Foi o conde quem perdeu.
– Mas escutai – atalhou o marechal.
Todos fizeram silêncio.
– Eu sei!? – dizia o conde ao seu interlocutor.
Seria talvez imprudência...
– Quando vós afirmais que respondeis pela lealdade de todos estes cavaleiros, posso depositar neles ilimitada confiança.
– Na verdade passaríeis a meta das minhas esperanças...
– Basta! Eis aqui os artigos!
E desabotoando a abertura do gibão, tirou resolutamente um rolo atado com um cordão tecido de cores e começou a desdar o nó.
O grupo dos fidalgos tinha-se insensivelmente aproximado.
– Amigos – disse D. Henrique dirigindo-se à turba, antes que o burguês se arrependesse –, quereis escutar um momento? Ouvireis alguma cousa que há-de interessar-vos.
– O quê? o quê? – perguntaram várias vozes.
– Os artigos de cortes por parte do povo.
– Ah!
A interjeição, que fugira ao mesmo tempo de todos os lados, era inclassificável; misto confuso de escárnio, de admiração, de malevolência e de curiosidade.
Mem Bugalho não gostou daquele ah.
– Senhores – balbuciou ele –, era uma promessa feita há muito.. – Só hoje posso cumprir a minha palavra. Nada arrisco em desempenhá-la na vossa presença. Sois nobres, sois honrados: não podeis trair-me.
– Oh, oh!
Esta nova interjeição ainda azoinou mais o procurador de Celorico; porque lhe pareceu mais inclassificável que a primeira.
Era, porém, tarde para recuar.
Os cavaleiros tinham-se acercado ao redor da mesa. Pataburro desenrolou o pergaminho. Era uma tira longa e estreita, escrita em cursivo miúdo e esguio. A luz das lâmpadas, mortiça já, alumiava frouxamente o rosto vermelho e amplo do decretalista, que, de pé, com a esquerda firmada na borda da mesa, e elevando o pergaminho a certa distância, inclinou pata trás a cabeça. A leitura ia começar.
O que é verdade é que, apesar dos ahs e dos ohs, ouvia-se o cicio do respirar mal comprimido, porque a atenção geral pendia inquieta dos lábios do doutor Asinipes.
A trovoada dos artigos era formidável!
Não estafaremos o leitor transcrevendo na íntegra os intermináveis quíries de uma ladainha de agravos municipais dos fins do século XIV. Esses monumentos de grandes opressões e de longas e tenazes resistências; esses brados enérgicos da cólera dos opressos, que, semelhantes a Sansão, derrocaram enfim a tirania do privilégio, sepultando nas mesmas ruínas as liberdades populares; esses monumentos, lá os achará aquele que desejar contemplá-los na sua rudeza nativa sumidos, talvez, no fundo da arca mais carunchosa do seu próprio município.
Os agravos acerca dos quais os conceitos exigiam providências eram vários e complexos, e a exposição deles vinha redigida no estilo sorna e estafado que então parecia sublime de singela eloquência. A primeira pretensão dos homens-bons, no que respeitava à nobreza, consistia na extinção das coutadas, negócio grave numa época em que o exercício da caça, tanto de montaria como de altanaria, era tido na conta de uma das mais dignas ocupações de qualquer fidalgo; em que o próprio Mestre de Avis consagrava parte das horas que lhe deixavam os cuidados da guerra e da política a escrever um tratado de cetraria, ou da arte de caçar com açores, falcões e gerifaltes; em que, finalmente, os monumentos nos representam os barões e damas de alta linhagem trazendo como distintivo uma ave de rapina empoleirada sobre o punho, distintivo, de feito, assaz significativo e epigramático. A vilanagem, porém, que não compreendia a idealidade que havia em ver os seus campos e bouças arrasados pelas lebres, veados e javalis, com sem-cerimónia blasfema pedia também para si o direito de enviar alguns tiros de besta a hóspedes tão incómodos como frequentes. Não satisfeitos com isso, queixavam-se amargamente dos alcaides-mores dos castelos, que, recebendo soldos da Coroa para pagarem a homens de armas que guardassem as boas fortalezas de el-rei, entendiam, e entendiam bem, que era melhor comer ou jogar os subsídios que recebiam e constranger os moradores dos concelhos a suportarem gratuitamente esse encargo. Ousavam também os impertinentes burgueses lançar em rosto a famílias tão ilustres e antigas como Noé ou Matusalém, se não mais, outra miséria, tal, que estivemos por um és-não-és a omiti-la. Queixavam-se dos senhores que, rodeados dos seus vassalos e clientes, costumavam residir nas terras a eles sujeitas e que, para evitarem os tédios da triste vida provinciana, consumiam em lautos banquetes, às vezes num mês, as subsistências de um ano, esquecendo-se de pagá-las, queixa absurda, visto que eles por serem nobres não eram exemplos das debilidades da retentiva humana; e se por aí violavam donzelas e viúvas, segundo os artigos rezavam, menos por fartar paixões más o faziam, que por benevolência para com essa raça achavascada, meio mourisca, meio servil, de labregos desagradecidos. Abusando das largas que lhe dera a revolução de 1384, a arraia-miúda engrimponava-se a ponto de lançar em rosto ao seu querido rei bastardo o haver mais de uma vez, em hostes e cavalgadas contra os cismáticos de Castela, confiado as bandeiras dos concelhos a escudeiros fidalgos, em quebra do antigo foro e uso de as levarem aos combates alguns dos próprios burgueses. Não paravam aqui as sandices populares. Representantes do supremo poder nos distritos cujos senhorios eram, os fidalgos exerciam pelos seus corregedores e ouvidores a alta magistratura judicial. Em consequência, as demandas eram intentadas, pelos que nisso interessavam, na instância superior, e os juízes ordinários ou de foro ficavam às moscas, enquanto os litigantes eram arrastados de terra em terra ao tribunal ambulante do senhor e reduzidos à mendicidade pelos gastos da demanda e das forçadas viagens. Assim, pediam que, em tudo o que fosse possível, girassem os litígios dentro da órbita municipal; desconchavo de marca maior, porque ninguém os obrigava a ser demandistas. Por último repetiam em especial contra os mestres das ordens, contra o prior do Hospital e contra Nun'Álvares Pereira, denominado por antonomásia ou por abreviatura o conde, e em geral contra todos os fidalgos, a acusação de serem um bando de salteadores, que, vagueando pelo país, tiravam aos cidadãos e mais arraia-miúda tudo aquilo de que precisavam, sem curar de saber quanto custava.
Tais eram os artigos resolvidos entre os mandatários dos concelhos acerca da nobreza e ainda da clerezia; mas a malevolência comunal não se resumia em tão pouco. A caldeira popular fervia e trasbordava. Propunham-se muitos outros, qual deles mais acre, que vieram a formular-se nas subsequentes assembleias políticas, mas em que o acordo não era ainda completo, se não quanto à essência, ao menos quanto aos acidentes. A intervenção dos nobres nas eleições municipais; o aquartelarem-se em certos bairros das vilas, transformados por eles em ninhos de abutres, em vez de residirem nas alcáçovas, que tinham por dever guardar; o impedirem nos coutos e honras o pagamento de fintas para as obras públicas, como fontes, estradas e pontes; o deixarem cair em ruínas os prédios urbanos que possuíam nas povoações como uma inutilidade, visto servirem-se dos alheios; as assuadas e violências com que embargavam nos paços dos concelhos ó livre exercício da justiça nos seus actos mais solenes; o exigirem o abatimento de um terço do preço nas cousas que se dignavam de pagar, abuso antigo e contrário às leis do reino; enfim, muitos e diversos pontos em que o povo via uma quebra dos seus foros ou um atentado contra a sua propriedade constituíam a série dos artigos pendentes, que se ventilavam, refundiam, renovavam, para ainda serem reconsiderados em relação ao tempo e modo de se apresentarem ao rei, posto que os delegados municipais concordassem uniformemente na sua justiça e necessidade.
A leitura acabara. Nem um movimento, nem uma palavra tinham interrompido a atenção geral. A voz do procurador levemente trémula deixara de vibrar, e um silêncio de túmulo lhe sucedera. Era o atordoamento que no primeiro ímpeto produzem o assombro e a indignação. Como o oceano, que, ao enovelar-se a procela, parece dormente, subjugado pela mão da terrível mensageira do Senhor, mas que, soltando um mugido ao encrespar-lhe o dorso a primeira lufada, eriça os velos de escuma e coleia em serranias de vagas, estourando sobre os continentes com alto fragor, assim a cólera acumulada rebentou, enfim, impetuosa.
A primeira lufada da tempestade saiu dos lábios do mestre de Christus.
Uma punhada sobre a távola, tão violenta que fez dar um pulo ao pobre Pataburro, anunciou esse primeiro furacão.
– Pelo santo templo de Cristo! – exclamou o orgulhoso chefe dos novos templários. – Tratar-me a mim e aos cavaleiros da minha ilustre ordem como um bando de salteadores e devassos, de glutões e tiranos! Muito é, vilanagem; muito é! D. João! Filho de D. Pedro! – prosseguiu ele, depois de uma pausa e estendendo a mão para o lado dos Paços de S. Martinho, como se o seu gesto e a sua voz pudessem romper os obstáculos intermédios. – Eis aí o fruto das largas que teu pai deu e que tu dás aos populares! Ousarão insultar os teus cavaleiros em S. Domingos, e tu, em vez de os condenares à forca, ainda lhes prometerás desagravo. Vai, vai afagando esses ursos, que forcejam por abater a fileira de nobres e valentes lanças que te rodeiam o trono, para depois porem as patas felpudas nos degraus dele, e irem com os colmilhos imundos partir-te nas mãos ou nas mãos dos teus herdeiros o ceptro do poder real. Roubo ao que é um direito! Quem deu a essa raça de víboras os campos que cultivam, as aldeias onde moram, os matos e bosques donde tiram desde os madeiros dos seus alvergues até as aivecas dos seus arados e o cepo do seu lar? Foram nossos avós, que conquistaram esta terra à mourisma; que a regaram com sangue próprio e alheio; que edificaram os povoados, as igrejas e os mosteiros; que, ao deporem a acha de armas, pegavam no venábulo e desinçavam as brenhas dos animais ferozes ou daninhos...
– Cujos restos – interrompeu Fernando Afonso – os vilãos querem também montear. Chegou-lhes o seu S. Martinho.
– Não me parece fora de razão isso – acudiu o abade de Alcobaça, a quem a passada leitura não alterara os meneios repousados, nem o olhar vago e tranquilo, nem o bondoso sorrir.
E deu uma destas risadas alvarmente velhacas ou velhacamente alvares que tanto podem significar o escárnio do queixoso como a aprovação do queixume.
– Sim! – continuou com veemência o mestre de Christus. – A nobreza, que arrancou a Leão a mais bela das suas províncias para instituir um reino; que, gerações após gerações, tem comprado com milhares de vidas os privilégios inerentes aos seus senhorios, às alcaidarias desses castelos cujas pedias estão unidas por cimento amassado com o mais puro sangue; cujas cárcovas estão calçadas com os troços das armaduras e com as ossadas de dezenas de ricos-homens e de centenares de infanções; a essa nobreza nem ao menos se permitirá usar dos direitos que lhe deram o valor e a morte, a vitória e o sacrifício? Negar-se-lhe-ão, até, poucos palmos de chão maninho e algumas alimárias bravias para seu desafogo inocente? Pela santa casa de Jerusalém! São senhoris e anchos os vilãos. Apertemo-nos nós... Façam praça a suas mercês que passam... E vivam os doutores que os protegem e que tão bem regulam pelas leis romanas o direito e a justiça!
As sobrancelhas carregadas, os olhos chamejantes, os frocos de escuma que nos cantos da boca se lhe penduravam do negro e arqueado bigode davam ao filho de D. Maria Teles um aspecto feroz. Nos gestos dos outros fidalgos, as rugas profundas das testas, que a moda anticastelhana dos cabelos excessivamente curtos tomava mais espaçosas, os dentes cerrados, que um sorriso ameaçador fazia alvejar, e nuns a palidez súbita, noutros o afogueado das faces pintavam com terrível eloquência o tumulto que ia naquelas almas. O próprio conde de Seia, que a princípio exultara na sua vitória, estava colérico – Só o abade de Alcobaça conservava, ao menos na aparência, inalterável placidez de espírito.
O senhor de Resende tomara a mão depois de Lopo Dias.
– Que sobretudo – vociferava ele – não ponham mão fidalgos-escudeiros nos pendões dos concelhos, embora el-rei haja dado cavalaria a burgueses, e estes homens de linhagem sem linhagem se estreiem nas batalhas ao lado dos cavaleiros de boa e generosa avoenga; embora a bandeira do solar tremule muitas vezes entre os ridículos farrapos metidos em haste de lança no fundo de alguma tenda da Rua Nova, ou...
– E porque não? – interrompeu um dos Pachecos. – Levem também caldeira para sustentarem em hoste gente de guerra e, montados em mulas de corpo, tragam atrás de si pajens com os cavalos de batalha.
A voz gasta e aflautada do reposteiro-mor chilreava entretanto:
– Isso, isso! Derroguem, até, a postura do grande rei D. Afonso sobre os vestidos: que tragam pelotes e calças de cor, e que façam choutear os seus jumentos e azémolas, não com acicates de ferro bruto, mas com esporas douradas. Trajem, vivam, andem como iguais nossos... Não digo bem... Troquemos antes os trajos! São eles os senhores; nós os antigos malados... Cochinos!
– Vedes vós: negarem-nos os bairros coutados!
– E quererem vender-nos nossas mantenças como lhes aprouver!
– Ou não no-las venderem...
– Matarem-nos à fome quando passarmos pelas vilas!
– Salteadores!
– É que lhes reina o sangue de mouros em veias de judeus!
– Pífia ralé!
– Cachorros!
Estas e outras exclamações e brados irritantes, acres, afrontosos, choviam de todos os lados, não, como nós os escrevemos, sucessiva e pausadamente, mas cruzando-se, atropelando-se, confundindo-se. A fronte de Pataburro anuviava-se. Soltara pano de mais ao vento, que, saltando de oposto rumo, o colha desprevenido. Embasbacado, atónito, não compreendia como se usasse de tal linguagem diante dele, burguês, antigo juiz de foro, doutor em degredos e procurador de uma vila como Celorico. Debalde o conde de Seia, apesar do próprio despeito, buscava restituir o sossego: a indignação, semelhante a incêndio mal comprimido, lavrava de instante para instante com mais força depois da explosão.
No meio da confusa algazarra uma voz trémula e estridente sobrelevou por cima das outras – Era a de João Rodrigues de Sá. O camareiro-mor estivera calado toda a noite, mostrando associar-se de mau grado àquela mistificação, e mais de uma vez no seu gesto e meneios se manifestara a impaciência. Homem tão violento de génio, como duro de braço e esforçado de ânimo, a petulância do povo tinha-o irritado a ponto, que, finda a leitura, sentia prenderem-se-lhe na garganta as palavras enoveladas, digamos assim, num turbilhão. Afinal a torrente trasbordou, e o fio das ideias tempestuosas do cavaleiro foi prender-se aos motejos insultuosos de Lourenço Pires de Távora.
– Meu senhor, meu igual, um vilão! Por S. Jorge! Quem o disser do fundo da alma, dir-lhe-ei eu que mente. Que me importa que os burgueses tentem elevar-se até mim? Eu é que não desço até eles. Tenho-vos mais de uma vez ouvido falar não sei em que enredos escuros, em recorrer à influência da rainha, em enganar procuradores com promessas que jamais se hão-de cumprir...
– Tal nunca se disse – murmurou a medo D. Henrique, prevendo que estas palavras bastariam para desvendar os olhos do licenciado acerca do seu procedimento anterior para com ele.
– Tal nunca se disse?! E para que trouxestes aqui esse tonto e iludido vilão? Conde, fazei mercê de dizer-mo; que a vossa aposta, essa já a ganhastes. Oh, ao que vejo reduzida a nobreza de Portugal! Momices, rodeios, misérias!... Vergonha, vergonha!... Era eu bem pequeno e ainda pajem quando foi a do Salado: vi aí os corredores infiéis combaterem volteando ao redor do inimigo para o ferirem a descuido: entre cavaleiros de Espanha é que nunca tal vi! Por esses caminhos tortuosos não sei eu andar. Como o Condestável; como todos os ânimos generosos, não gasto nem tempo nem cuidados com as insolências de vilãos. Se me espoliarem do que me pertence, pedirei justiça a el-rei: se não ma fizer, fá-la-ei eu. Somos surdamente ameaçados de violências e revoltas populares – Que importa? Os arneses dos nossos homens de armas são bem temperados, ge as nossas espadas não estão ainda tão botas como isso! Nas minhas terras, o rei sou eu. Aceito dos concelhos a paz; mas não recuso a guerra. Hei-de repelir as injúrias e usurpações, quando com elas me quiserem pagar as feridas à custa das quais – das minhas e das de tantos outros – mais de uma vez ficaram grunhindo e chafurdando tranquilos nas suas pocilgas esses javardos imundos. Mantenha-vos Deus, amigos; que, segundo creio, o arremedilho é findo. Podeis despedir o jogral.
Debalde o das Galés tentara dar às últimas frases um tom de placidez e frieza que contrastava com a violência e desordem delas, e que o metal e o trémulo da voz desmentiam. Lançando um olhar de profundo desprezo a Mem Bugalho, embrulhou-se no capuz, saiu pelo corredor escuro, e dali a pouco a porta exterior soou rijamente nos batentes fechada de golpe.
Às palavras «tonto e iludido vilão», o pobre decretalista arregalou os olhos. Estava petrificado. As palavras de João Rodrigues de Sá tinham passado como clarão infernal. Sem transição, tinham-no despenhado de um mundo ideal de esperanças num pélago de afrontoso ridículo. A sua desonra fora consumada perante testemunhas de sobra para ser divulgada. O rubor e a palidez sucediam-se-lhe no rosto como os estos do oceano. Quis falar, e a língua seca e tolhida não podia meneá-la: desejara fugir, mas sentia-se como grudado ao pavimento. A sua situação seria capaz de comover o ânimo mais duro, se a irritação não houvera subido ao último auge.
Longe de inspirar piedade, o gesto transtornado do procurador suscitou unicamente a irrisão.
O primeiro tiro partiu dos lábios de Fernando Afonso; do homem, para quem os trances da agonia alheia eram um recreio como outro qualquer, ainda quando o furor ou o ódio não excitavam a sua índole perversa.
– E que pensas tu, vilão, de tanta insolência? – disse ele, voltando-se para o estupefacto Mater-Galla, cujo olhar espantado errava por aqueles gestos incendidos. – Que pensas; que pensas?... Oh!... Pensas o que pensam os outros. Não é isto?... Fala, homem; que me pareces um odre assoprado posto no canto de uma taberna judenga.
Tal um papo de peru cheio de vento que, pelo Entrudo, serve de joguete ao rapaz travesso e sem estourar retumba uma e muitas vezes nas costas de galego boçal, mas que encontrando o bico do mais subtil alfinete se lhe extravasa o ar comprimido, engelhando de súbito, assim o licenciado, que despertara dos seus dourados sonhos em realidade cruel, para cair numa espécie de paralisia interior, aguentara o rugir da procela sem proferir palavra; mas, brutalmente interpelado, saiu daquele torpor com energia. A injúria do moço escudeiro fora a picada do alfinete subtil. A exaltação moral, ímpeto doloroso de um coração barbaramente esmagado, ilumina de terrível luz ainda os entendimentos mais broncos e alevanta-os às vezes até as inspirações do sublime. O olhar, até aí vago, do procurador fitou-se ardente no mancebo. A palidez de uma cara opada triunfara enfim da vermelhidão nativa do seu rosto rechonchudo e rutilante. Golfavam-lhe da boca as palavras lentas, baixas, mas firmes, e a indignação e tristeza davam-lhe subitamente aos ademanes, até então acanhados, e ao gesto pouco expressivo a dignidade das grandes agonias.
– O que parece ao vilão? – murmurou ele, rangendo os dentes e alimpando com a manga do gibão os olhos arrasados de água. – Parece-lhe que vos sobra razão para vituperardes o fraco e desleal que atirou o angustiado gemido dos pequenos e opressos como um desporto às jogralidades e ludíbrios de ilustres truães! Homem do povo, traí o povo. Tinha prometido guardar um segredo; guardá-lo religiosamente até ao dia em que a voz dos concelhos de Portugal, trovejando pelas abóbadas de S. Domingos, bradasse a el-rei com um acento ainda não ouvido por ele: «Justiça!» Deixei-me embair por lisonjas, por fingidas demonstrações de amizade. Sou um insensato!... Ride e folgai, valentes cavaleiros, que abusastes da fraqueza, além de imprudente, criminosa, de um homem chão. Mas, se eu fui culpado e fraco, pergunto: que serão aqueles que, sem respeitarem o bom nome de sua linhagem, o seu grau de cavalaria, os títulos, enfim, de que se vangloriam e, o que mais é, desprezando todos os preceitos do céu e da terra, abusam da simplicidade e afeição de quem deles se fiou? Que serão aqueles que, semelhantes a salteadores e a assassinos, trazem enganada a sua vitima, de noite e a lugares escusos, para lhe matarem, não o corpo, mas a alma; para o amarrarem, não à árvore de caminho solitário, mas ao poste da desonra? O que estes são e o que valem dir-vo-lo-á a consciência, quando o prazer de uma acção infame houver passado. Ride e folgai, meus nobres senhores! No meio das trevas apunhalastes pelas costas um homem desprevenido, que nunca vos fez mal, que vos amava, que sacrificou o único tesouro de burguês humilde mas honrado, a reputação de leal à sua palavra. Ride, ride!
– Mas, doutor, deixai-me explicar-vos... – ia a interromper o conde de Seia, algum tanto comovido com ver rolar duas lágrimas pelas faces do licenciado.
Foi pior.
– Cal-te, satanás enganador e bulrão, que creste comprar-me com as tuas promessas e com o teu ouro. Guarda-as e guarda-o! – Dizendo isto, Mem Bugalho deu um revés com a mão por cima da mesa e espalhou no pavimento as dobras que ganhara. – Ouvi tudo calado: agora toca-me também falar... Ide; assoalhai por toda a parte que o procurador de Celorico vos vendeu o segredo dos seus companheiros. O preço da venda, isso deixai-mo a mim, que eu contarei qual foi! Lançastes lodo de mais, meus cavaleiros, sobre o peão escarnido; mas o peão há-de fazer-vos espadanar algum para o rosto... Dantes, o nobre homem de armas a quem se dissesse «és um vil embaiador» lavaria em sangue o doesto; porque, segundo rezam os vossos livros de cavalaria, o engano e a dobrez eram impossíveis em ânimos e em bocas de nobres senhores; e eu agora posso dizer-vos que sois embaidores e vis, meus ilustres fidalgos. Doem-vos os artigos? Conformai-vos!... Vede vós: é que o povo, esse pode ser injusto, voluntarioso, insolente, cruel; pode arrastar pelas ruas bispos traidores, donas prostituídas, alcaides vendidos ao rei estranho; mas tem uma virtude: é franco e sincero; franco e sincero no seu amor e no seu ódio; usa verdade e di-la, sem curar se dói ou não dói. Fazia-vos mal o meu silêncio? Pois bem! Dir-vos-ei que sobra justiça aos concelhos e que vos, meus ricos senhores, sois uns ladrões e uns devassos...
– Eu te respondo, vilão! gritou Fernando Afonso, encaminhando-se para a cabeceira da mesa, com a mão no punhal que tinha na cinta.
– Que é isto? Sangue aqui! – exclamou o abade de Alcobaça com voz de trovão, e avançando também alguns passos. – Se...
Não pôde continuar. Fora interrompido por uma risada descomposta, que partira dos pulmões bovinos de D. Henrique Manuel.
Fernando Afonso parara. O prelado parou também.
O despeito, quando facilmente podemos esmagar quem o causa, tende a manifestar-se antes pelo insulto que pela violência. Esta tendência fez com que o conde evitasse um assassínio. A sua intimidade leonina com o procurador acabara: era um mal sem remédio. Abaixou-se, pegou numa das dobras espalhadas no chão e, chegando-se a ele, fingiu que obrigava a aceitá-la.
– Bem cantado, jogral maltrapilha! Canta-nos agora a oração do justo juiz.
Uma gargalhada geral, retumbando dos quatro ângulos da mesa, correspondeu a estas palavras.
A situação moral do desgraçado Asinipes, qualquer a pode avaliar. Tinham-no arrojado como uma pedra de catapulta para as ideias burguesas, ou antes despertado nele todas as paixões odientas que naquela época ferviam nos ânimos populares. Estava furioso. Acudiam-lhe tumultuariamente aos lábios as frases mais violentas das muitas filípicas que ouvira uma e outra vez nas conferências secretas dos procuradores, e, sem disso dar fé, ia ajuntar aos capítulos que lera os desordenados comentários que, até certo ponto, os explicavam.
– Ah, sim, continuarei – acudiu ele, e a voz gutural tremia-lhe de raiva, ao passo que nos seus olhos, agora enxutos, brilhava o furor. – Muitas mercês vos devo, senhor conde, que me obrigam a obedecer-vos!... Mas porque não consentistes vós outros que esse esforçado escudeiro me assassinasse? Depois da deslealdade a covardia... Um só no meio de tantos!.., um só e desarmado!... Bem vos ficava, que sois cavaleiros de Portugal... de Portugal ou de Castela, segundo o vento fizer esvoaçar as bandeiras das torres e besantes ou as dos leões e castelos., – Repito-o, meus fidalgos: os concelhos têm razão. O povo é roubado pelos vossos juizes, pelos vossos ovençais, pelos vossos acostados e por vos mesmos. Aves de rapina, porque viestes de novo cevar-vos e anafarvos em terras de Portugal? Porque não ficaste pairando ao redor do cismático de Castela? Antes da de Aljubarrota não rompíeis lanças por D. Beatriz? Os traidores eram dos mais nobres: porque não os imitou o testo? Ora sus, e cavalgar para Burgos, que lá tendes o coração. Com os aquantiados e besteiros dos conceitos e com os Lanceiros de pé, nós os do povo defenderemos o rei e o reino. Saem-nos muito caros os arnesados de mula de corpo, cavalo de batalha, estoque e misericórdia, elmo e solhas dourados. Afirmais que vos devemos tudo quanto possuímos, campos, moradas, igrejas, liberdade, independência! Que mais? A luz, o espaço, o ar, a água? Talvez. Pretendemos cercearvos os privilégios, dizeis vós: mas donde vos vêm eles? Da mercê dos reis antigos. O rei moderno, o eleito do povo pode tirar-vo-los. Qual é o vosso direito de despojar os que não resistem? A força. Quando o povo, que oprimis, for o mais forte, porque não vos esmagará? Somos ingratos? Livrai-vos de que os conceitos ajustem contas!... Eu poderia dar-vo-las...
– Venham elas, birbante! – interrompeu Fernando Afonso, que respondera a cada frase de Mem Bugalho com uma gargalhada, pensando fazer assim penitência por haver querido sujar o punhal no sangue de um vilão. – Sabes de algarismos? É que teu pai e teu avô não passaram de judeus sacadores ou rendeiros de direitos reais.
– De que nunca viram nem uma pojeia – acudiu Pataburro – porque vosso pai e vosso avô não passaram de homens de armas dos alcaides ladrões, que chamam suas as ovenças da Coroa e que o santo rei D. Pedro usava esquartejar.
A fúria ia quase fazendo agudo o triste Mater-Galla. Nem com isso, porém, alcançou pôr termo ao tom de mofa dos cavaleiros. A resposta à injúria do burguês foi, como até aí, uma risada geral.
– Assim seja! – continuou o camareiro. – Mas aponta, fariseu, as nossas dívidas e ajunta no fim o preço de uma boa corda, que desde já me obrigo a pagar no dia em que te enforcarem num carvalho bem alto. Quanto soma?
– Quereis as contas, gentil escudeiro? Assinadas e seladas dos selos de cem concelhos as vereis em S. Domingos dentro de poucos dias. Antes disso, não faleis tão arrogantes em tantas cousas que chamais vossas. Vossos os castelos, vossas as terras da Coroa, vossos os direitos reais, porque os compraste com sangue? Por Deus, que sois esquecidos! Com os tributos do povo, que combate de graça, melhor que vós e nunca nas azes do senhor estrangeiro, vos pagaram sempre avultados soldos para vos enxotarem dos vossos ninhos de abutres e virdes enristar as lanças nos campos de batalha ou fazer reluzir os montantes nas quadrelas das muralhas. Quite está convosco o rei que vo-los dá; quites estamos nós que para isso repartimos com ele o fruto do nosso suor. É invocando a todo o momento esse uso antigo que vós, meus generosos senhores, não quereis servir hoje nesta luta de morte com Castela a troco das rendas das terras, que, sem encargo algum, tendes até agora desbaratado. Alevantai-vos com a esmola e é a nós outros que chamais vilãos ruins?! Parti a contenda ao meio. Vilãos nós; ruins vós. Pensais, acaso, que o povo ignora quantas vezes tendes ameaçado D. João I, se vos não pagar as quantias, de vos retirardes para os vossos solares? Para os de Portugal ou para os de Castela, meus leais cavaleiros?
– É mentira! é mentira! – exclamaram com ímpeto, mas involuntariamente, quase todos os circunstantes, porque o licenciado acabava de lhes lançar em rosto uma duríssima verdade,
– Se é mentira ou não, sabei-lo vós e sei-o eu – retrucou Mem Bugalho, que sentia desapertar-se-lhe algum tanto o coração, vendo que, enfim, achava uma juntura por onde falsar as armas dos seus contrários.– Conheço as causas do vosso ódio contra o povo. Quereis dinheiro, mais dinheiro, muito dinheiro, e Portugal não o tem; porque o pai da vossa D. Beatriz o desbaratou com a fidalguia portuguesa e castelhana. Há vinte e dois anos que morreu o santo rei D. Pedro, e há outros tantos que somos roubados – É por isso que os concelhos vos dizem: «Basta!» Basta, homens que consumis em saraus, em torneios e em justas toda a substancia pública: basta, demónios de orgulho, de luxúria, de embriaguez, de cobiça! Levastes-nos já a pele, a carne e o sangue: não nos levareis os ossos!
O heróico Mater-Galla estava em pé, fronte alta, perna retesada, braços estendidos, punhos cerrados, grandioso, sublime, terrível e, força é dizê-lo, esfalfado. O sangue tinha-lhe retrocedido gradualmente do coração ao rosto: não podia piar. E não era pela extensão do discurso: era pela veemência das ideias, da voz, do gesto. Os fidalgos, irritados pelos tiros que lhes despedira o furioso procurador, balbuciavam entre o escárnio e a vingança brutal. Houve um momento de silenciosa hesitação. A insolência da altivez triunfou enfim, e as últimas injúrias de Mem Bugalho tiveram em resposta ainda outra vez um coro de repetidas gargalhadas.
Mas era um rir triste, frio, forçado, como os aplausos dos cortesãos que se espicaçam para achar esperteza e sal em sensaborona tolice que saiu da boca do monarca.
O procurador não pôde resistir mais a esta atmosfera de inexorável desprezo. Com passos vacilantes, rápidos, desiguais, fugiu da mesa. Precisava de ar, de espaço, de frescor. Queria sair: foi esbarrar numa parede. Recuou: foi encontrar-se com outra. Começou a correr em volta do aposento. Não atinava com a saída. Então é que o rir se tornou espontâneo e estrugidor. Naqueles sons discordes havia imitações de todas as vozes possíveis de alimárias: o nitrido, o regougo, o pio, o zurro, o rugido, o trinado, o sibilo, o mugido, o urro. Dir-se-ia que a tavolagem era a Arca da Aliança, ao abrir-se no cimo do Ararat. Lourenço Brás, que adormecera estirado no lar, acordou ao ruído e, esfregando os olhos, pôs-se a mirar, no meio de um tremendo bocejo, o atarantado burguês. «Ui!», disse o besteiro lá consigo. «Jogam à cabra-cega? Bonito!... Nada; não: já veio. Tem os olhos destapados. Que diabo será Isso?!»
– Lourenço Brás, Lourenço Brás! – gritava Fernando Afonso. – Ajuda a sair aquele varão com dois couces nas pousadeiras!
O besteiro não era homem que fizesse repetir duas vezes a mesma ordem ou que se pusesse a filosofar sobre ela. Ergueu-se e dirigiu-se para o licenciado. Felizmente este atinara, enfim, com a saída, e Lourenço Brás teve de segurar-se com ambas as mãos a uma das ombreiras, porque, ao despedir um pontapé para o corredor escuro, onde desaparecera o designado padecente, feriu em vão no ar e, faltando-lhe a resistência das nádegas municipais ao impulso da perna, sem aquela precaução ficaria infalivelmente estatelado.
Entretanto os cavaleiros cobriam-se com os amplos capuzes deitados por cima dos bancos que circulavam o aposento, rindo e falando todos a um tempo. Os dois frades esses tinham-se apressado a sair.
A sós por alguns instantes com o seu companheiro, na passagem estreita, o abade disse de manso para Fr. Vasco:
– Vai, corre!... Busca detê-lo à Porta do Ferro, enquanto eu me livro destes diabos. Quero falar com ele: quero persuadi-lo a ir amanhã ter comigo ao Colégio de S. Paulo. Assegura-lhe que é o meio de obter pleno desagravo. Jura-lho até in verbo sacerdotis. Anda depressa: não te demores!
Nada mais pôde dizer. O moço frade saiu correndo e sumiu-se pelos becos que iam dar ao terreirinho da Sé. O abade tomou ao longo da muralha para o lado das Fangas Velhas, e os fidalgos seguiram-no maquinalmente.
Como ele soube esquivar-se à turba que o rodeava é o que não diz a crónica. Só refere que, daí a alguns minutos, junto ao arco da muralha de D. Afonso, que, perto da Torre da Escrivaninha, dava passagem do átrio da catedral para a Rua Nova, e que se chamava a Porta do Ferro, as sombras de três vultos se estiravam movediças no terreiro, escassamente alumiado pela lâmpada que ardia na Capela da Senhora da Consolação, sobranceira ao arco. Depois de falarem algum tempo com veemência, os três vultos separaram-se afinal. A conversação, que parecia interessar-lhes vivamente, de ninguém foi ouvida, porque o sítio estava deserto. Daí a pouco, D. João de Ornelas, seguido do seu companheiro, puxava fortemente pela sineta da portaria do colégio, onde, morto de sono, ora passeando, ora assentando-se, o esperava ainda, não por caridade, mas por ordem do prior, o converso Fr. Julião, cansado já tanto de rezar e de se encomendar a Deus, como de encomendar a todos os diabos sua mui poderosa e ilustre reverendíssima, o abade D. João, fronteiro e alcaide-mor de Alcobaça.
O converso abriu a porta rosnando, e os dois frades entraram. Não tardou muito que no sino do coro batessem as badaladas que anunciavam a hora de prima. Era que o céu ia-se afogueando já com os primeiros fulgores de uma bela madrugada.
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