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O Monge de Cister

Capítulos 15

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O Monge de Cister: Tomo I XIV - DESÍGNIOS

Contas na mão, e demo no coração.
Onde o ouro fala, tudo cala.
ADÁGIOS ANTIGOS

 

As frases abruptas por onde concluímos o precedente capítulo fizeram, talvez, com que o leitor se capacitasse de que, semelhantes ao coxo Asmodeu, o arrebatávamos da modesta habitação da Rua de D. Mafalda para o transferirmos em bolandas a algum lugar ou escuso ou remoto, na cidade ou extramuros, para assistir a estranhas cenas, só atadas às que já presenciámos pela progressão dos sucessos que temos a glória de ir desenterrando do pó do esquecimento. Quanto são errados os juízos humanos! Enganarse-ia o conversável e pacifico leitor que assim o pensasse. Posto que a literatura destes nossos tempos – o drama e a novela – tenham levado tanta vantagem em rapidez e locomoção às vias férreas, quanto levam as faculdades da imaginativa às forças mais enérgicas do mundo material, a nossa mutação, apesar disso, respeitará as sãs doutrinas da unidade de lugar e de tempo.

 

Abramos a porta da antecâmara onde estão, fechados por dentro, o monge e sua irmã, e desçamos por esta estreita escada que fica à nossa direita. Bem. Estamos numa casa térrea. O lar com um resto de brasido, ali o vemos daquele lado; uma banca de pinho no meio da quadra; defronte a cantareira com o vermelho e encerado pote, por cima do qual pende ao desdém grosso mas limpo bragal, reluzindo em volta, na prateleira mais alta, uma renque de caldeiras, agomias, pratéis, salsinhas e outros trastes análogos, sobre o chão alvo da parede irrepreensivelmente caiada. Evidentemente, o aposento onde nos achamos é uma bem arrumada cozinha.

 

Mas para que descemos, para que revistámos, para que viemos aqui?

 

Esperai, que ainda não vimos tudo.

 

Olhe o leitor para aquele recanto escuro, aonde mal chega a claridade quase crepuscular da chamazinha que de vez em quando espirra no candeio de ferro pendurado dentro da chaminé fuliginosa. Não divisa lá o que quer que seja? uma janela aberta; umas adufas alevantadas; um raio de luz de estrela, que escapa por entre a rótula? Não enxerga um vulto roliço, curvado sobre o peitoril, posto nos bicos dos pés e com a cabeça torcida, meio para o lado, meio para o ar, como se espreitasse algum planeta ou esmasse, pelo curso de nuvem passageira, donde viria o vento? Não conheceu ainda pelas linhas do perfil, pelas roscas espirais do pescoço, pela touca farfalheira, pela rotundidade das ancas, pelo lombudo das costas, a boa da tia Domingas? Pois é ela. Cheguemo-nos pé ante pé; tenhamos a respiração: apliquemos o ouvido, e convencernos-emos de que não foi inútil para a inteligência deste importante livro devassarmos o interior da morada de Beatriz, nem descermos aos domínios culinários da cuvilheira, enquanto Fr. Vasco anda filosofando, lá em cima no sobrado, à maneira dos peripatéticos.

 

A respeitável matrona de Restelo fora excluída da larga conferência do moço cisterciense com sua irmã. Mandarem-na sair do aposento buliu-lhe com a subjectividade. Fr. Lourenço nunca mostrara semelhante falta de consideração. Desceu resmoneando para a cozinha e começou a arrumá-la, trauteando a devota loa do justo juiz, indício supremo das horas aziagas de mau humor e perrice da tia Domingas – Andava tudo numa poeira: as tripeças iam-lhe adiante dos joelhos; a banca de pinho levou mais de dois empurrões: esteve quase meia hora a raspar numa caldeira com um talhadouro velho e cheio de mossas: fez cair no chão uma barda de pratos de estanho, querendo matar com uma vassourada uma barata que ia a correr pela parede, e por fim de contas quebrou um lindo púcaro de Estremoz, ao enchê-lo de água para apagar o brasido. Depois de todas estas façanhas e cavalarias, abriu a janela, alçou a adufa, escarrou, tomou ruidosamente a respiração por três vezes e concluiu esta série de actos expressivos com dois ai! ai! seguidos da exclamação sacramental:

 

– Coitado de quem atura filhos alheios!

 

– Que tem, vizinha? – murmurou de uma janela lateral voz adocicada que parecia de mulher moça.

 

– Que tem, que está agoniada? Passou bem? Já não há quem a mereça.

 

– Que hei-de ter? A minha vida; a minha vida! Parece que me não benzi ou que tenho pecado mofento. Se esta semana me não confessei! Fui hoje a S. Francisco. Qual Fr. Isidoro, nem meio Fr. Isidoro! Tinha ido pregar a Restelo. Meu rico padre espiritual, que foste deitar as mas pérolas a porcos. Sempre lhe digo, vizinha, que gente assim... Elas: cal-te boca: e eles... Ai, Virgem bendita! Mancebias, mancebias, que é um tremer. E não há-de haver peste, fome e guerra?! Não; que não há-de. Pecados e mais pecados: onzenas, mortes, roubos, murmurações; e querem que Deus tenha paciência? Demais a tem ele tido. Mas, como lhe ia dizendo: tudo me sai esta semana torto! Sábado de Nossa Senhora é hoje! Ainda bem que está acabada. Jesus, santo nome de Jesus! E a vizinha como vai?

 

– Bem, tia Domingas; obrigada. Diga-me cá: não tenho visto o frade bernardo já idoso que aí vinha todos os dias... frei.. – frei...

 

– Fr. Lourenço, não é que diz?

 

– Falou; que cant'ao moço, ao irmão de sua domna, esse vi-o eu entrar ainda agora...

 

– Mandaram-no lá para um convento de cima. Cousas da governança, conforme ouvi rugir. Era frade de lei! Cá nos deixou a chaga do companheiro. Forte casmurro é o tal Fr. Vasco. T'arrenego! Lá está em cima a azaranzar a coitada da irmã. Hum, hum, hum. Sempre a rosnar o maldito! É focinho com que não engraço. Ainda não lhe vi os cunhos ao dinheiro, nem lhe ouvi boa palavra. Escute... Aí anda ele com a veneta: dá- lhe que dá-lhe, a passear. Gasta naquilo horas esquecidas. A irmã chora que se mata. O que lhe ele canta, isso não sei eu. Olhe: sabe o que lhe digo? É que há gente que nasceu para castigo dos outros.

 

– Então, visto isso, não tem podido intrujir...

 

– Nada: por ora nada. Ele a entrar, e a acenar-me com a mão que saia. Parece um fidalgo! E pam, porta nas costas; e zás, volta à chave. Já estive uma noite a escutar na escada; mas o excomungado, Deus me perdoe, que falo do bento cercilho abaixo e com a devida reverência ao hábito do nosso padre S. Bernardo, parece que me pressentiu, porque asse para a irmã (aqui a tia Domingas fez uma voz do papo): «Toma tento, Beatriz: se esta cuvilheira for curiosa, é preciso despedi-la.» Depois escarrou e tossiu. Fiquei sem pinga de sangue, e o suor era em bagas. Desci pé ante pé. Abrenúncio! Não; lá isso não! Ainda que se matem um ao outro não saio da cozinha.

 

– Ora, ora! É esquisito o irmão da sua domna! Irmão: creio que não tem dúvida que é irmão – disse a outra com uma certa inflexão de voz maliciosa.

 

– Essa é boa! Pois eu parava aqui um instante, vizinha? Menos isso! Com Domingas do Sacratíssimo Lado não faziam farinha. Coma-se de rala; mas cara descoberta. Irmão carnal de pai e mãe. Disse-o Fr. Lourenço, está dito: para mim é um evangelho. Bem sei que haverá praguentos e murmuradores que deitem peçonha; mas nesse ponto ponho as mãos no fogo. E demais: ninguém pode tapar as bocas do mundo. Melhor era que certa gente olhasse para si! As cousas a mim não me caem no chão. Já cá ouvi uns zunzuns, e por isso canto por esta solfa. A propósito – acrescentou a tia Domingas em voz ainda mais submissa – : como vão os namoricos da vizinha do segundo andar, da filha do tabelião? Tem visto passar o cujo?

 

– Isso pergunta-se? Ainda hoje: eram trindades. Cavalgava um cavalo raudão: trazia saio de cetim azul, empenado à volta de martas, e calças roxas brosladas, chapéu chapado à francesa, borzeguins de gamo, todo airoso e bem-posto. É um mocetão: lá isso é! Chegou ali defronte e pôs-se a sofrear o cavalo, que principiou a saltar e a recuar e a fazer um estrupido na calçada, que até veio à porta o vizinho armeiro, e mais estava azafamado a acabar umas grevas. Alçou-se então a adufa, aí mesmo por cima da câmara da sua domna, e apareceu aquele rostinho de alfenim, com um riso e olhar que matavam. O gentil escudeiro, que não despregava os olhos da janela, depois de fazer suas gaifonas, partiu a galope. Creio que o pai não estava em casa...

 

– Não estava; não – interrompeu a velha Domingas. – Hoje, a horas de terça, vinha eu pelas Fangas acima, da banda dos cobertos do Pelourinho, de fazer as minhas mercancias. Com quem havia de dar de rosto, mesmo à porta do paço dos tabeliães? Com o mestre Bertolameu.

 

«– Olé, vizinho! Hoje não se dormiu a sesta? – perguntei-lhe eu a rir. Vai ele e diz-me:

 

«– Pois que quer, senhora Domingas? Nestas vésperas de cortes não há mãos a medir. Os procuradores não se tiram do paço a pedir traslados autênticos, certidões, autos, e quanto lhes vem ao bestunto. Temos que dar à unha até o serão. Guarde-a Deus, vizinha.

 

«– Vá na graça do Senhor – respondi-lhe eu e vim arrastando a ossada até o alto da Madanela". Cheguei estafada a casa. Eu a entrar e a moura de mestre Bertolameu a sair. Ia tão estonteada, que me pisou o melhor calo que tinha. «Terçãs te comam, demónio!», disse-lhe eu. «Seja pelas chagas de Cristo!» Pois, que pensa que ela fez? Desatou a rir e foi-se esgueirando. Se a apanhasse, esbofeteava-a. Rir-se de mim aquilo! Eu, que a conheço de Restelo e mais o perro do pai. Às três o diabo os fez. Deram em pantana com um tratante dum almuinheiro, com quem ela esteve de casa e pucarinho. Agora meteu-se a soldadeira, até ter outro cómodo... Mas cal-te boca! Certas cousas é melhor não falar nelas, para não cair em pecado de murmuração. Só lhe digo que a tal Zila há-de ser uma alcaiota de truz.

 

– Lá isso é verdade, Tem-no escrito na cara – replicou a outra cuvilheira. – Mas diga: ainda não perguntou quem era o bargante? Tenho ideia daquela verónica. O especieiro prazentim ali de baixo creio que o conhece.

 

– Conhece, conhece! Fui lá ontem comprar um pouco de açúcar rosado de Alexandria e uma dinheirada de pimenta. Era misser Richarte em pessoa que estava ao balcão. Boa laia de homem que é aquele misser Richarte! Fala como um breviário, e até lhe dá graça a sua meia-língua. Derriçámos o nosso bocado: veio o negócio à balha, e pôs-me tudo em pratos limpos.

 

– Então quem é? quem é? – interrompeu a interlocutora, que rebentava de curiosidade.

 

– É um tal Fernandafonso, camareiro de el-rei ou o que é. Fernandafonso pareceme que disse misser Richarte... É isso, é.

 

– Quê... tu... nã... tão! – exclamou a colega da tia Domingas, carregando naquelas quatro sílabas, que, proferidas assim lentamente por uma boca de mulher, significam: «Muita pena tenho de que não seja o caso comigo.»

 

– Sim!? – replicou a velha. – É o que se vê neste tempo. Oh tem para amoras! como diz aquele santinho de Fr. Isidoro por seu latim, quando discorre sobre o que é este mundo. A mocidade vai perdida; perdidinha! Está fresca D. Alda! Pobre mestre Bertolameu!

 

– Dele também eu tenho dó. Mas dela?! Sua alma, sua palma. Não importa, que é para lhe abater as soberbas, àquele focinho torto. A boa porta vai bater! Aquilo, que era capaz de enrodilhar as onze mil virgens! Olhe que as punha à cinta...

 

– Ai, mana, não diga heresias, que se me arrepiam os cabelos.

 

– É modo de falar. Se ouvisse as histórias daquele estavanado que andam em praça, isso é que é de fazer arrepiar. Não acabava, se começasse a enfiá-las. Quer saber uma fresquinha que me contou ontem a minha freguesa de pescado, que mora na Rua das Esteiras, na esquina do terreiro de S. Julião por baixo da Ermida da Oliveira, defronte de um tosador?

 

– Bem sei; bem sei: de mestre Inofre, que tem uma filha já espigada...

 

– Foi com essa mesma o caso...

 

– Domingas, Domingas! – soou de repente do alto da escada. Era a voz estridente de Fr. Vasco. A velha nem deu as boas-noites à palreira vizinha. Deixou cair a adufa e gritou: «Aí vai, aí vai. Estou acabando de encerar o púcaro de Estremoz.

 

A pressa com que a chamavam era uma excelente desculpa recriminatória para quando aparecesse quebrado.

 

Enquanto ela tarda em subir, para provar com muda eloquência a lida e azáfama em que andava, vejamos o que, durante o diálogo que transcrevemos para edificação do leitor, se passara no aposento de cima.

 

O moço frade tinha passeado muito.

 

Parou, finalmente, com o rosto voltado para a parede e com as mãos cruzadas atrás das costas, como se estivesse lendo atentamente o Mané, Técel e Fares da sala do banquete de Baltasar.

 

E, contudo, nada via de quanto o rodeava. Tão íntima era a sua meditação.

 

Depois de se conservar largo espaço naquela postura, virou-se como impelido, após violenta luta consigo mesmo, por uma resolução suprema; dirigiu-se para Beatriz, pôs-lhe a mão sobre a cabeça e disse com solene tranquilidade:

 

– Minha irmã, ainda resta uma esperança.

 

Beatriz alevantou o rosto, com um sorriso fugitivo de incredulidade, e logo deixou pender a cabeça entre as mãos, meneando-a lentamente.

 

– Resta sim! – prosseguiu Fr. Vasco. – Era sangue o que devia remir a sedução; mas o sangue que lava a beta negra traçada na fronte golfa para o coração do assassino e assinala-lho com outra beta mais cruel e mais negra, que pouco a pouco se vai irradiando e o devora. Poupemos o sangue e tentemos ainda!... Fernando salvará a tua honra, a honra de nosso pai e a minha própria, se é cousa essa em que deva pensar quem traja em vida a mortalha. Há um ano teria corrido a saciar-me de vingança inútil; hoje a seiva do meu viver está gasta, muito gasta, Beatriz. Na escola da adversidade aprende-se a prudência. Vamos lá; vamos tentar se nas trevas da sua alma pode penetrar um raio de piedade e justiça: vejamos se a reparação pode absolver-me do desagravo que perante a imagem sacrossanta de nosso pobre pai jurei tomar. Senão... Deus se amerceie dele e também de nós!

 

Estas palavras foram ditas num tom que fez tremer Beatriz.

 

– Não, não! – exclamou ela. – Nunca!

 

O monge continuou, como se não a tivera ouvido:

 

– Que te diga diante do mundo «tu és minha mulher» e que depois te abandone, te deteste. Que te importa ou que me importa? Eu te amarei por ele; eu concentrarei em ti as minhas afeições todas. Reclinarás a tua alma neste coração devastado e desato e repovoá-lo-ás de ternura. Viveremos um para o outro: esqueceremos no amor fraterno passadas desventuras; porque ambos nós temos muito que esquecer... É necessário que esse homem torne a ver-te; que mais uma vez te humilhes ante o teu sedutor, e que seja ele, não eu, que lavre a própria sentença.

 

Como se no regaço lhe houvesse lançado uma víbora, Beatriz deu um grito de horror, e pôs-se em pé.

 

– Mata-me, Vasco – exclamou ela com o ímpeto da indignação. – Podes; devias, talvez, tê-lo feito. Que a terra cubra a nossa desonra. Mas eu humilhar-me ainda uma vez ante esse homem que me envileceu, sacrificando-me aos pés de outra mulher; que fez de um amor ardente, ilimitado, submisso, objecto de infame ludíbrio; que me impeliu de crime em crime, e por cuja causa nosso pai legou a sua filha a justa maldição do moribundo?! Oh, isso não! Bem sei em que abismo cal. Mas antes perecer do que aceitar, para dele sair, a mão atraiçoada que me precipitou.

 

– Como te aprouver, Beatriz – replicou o cisterciense, cujos olhos cintilavam, mas em cuja voz firme e serena apenas vibrava ironia amarga. – Vejo agora que era um insensato quando imaginava que valia a pena de sacrificares alguma cousa ao teu e ao meu futuro; que valia a pena de não poupares um derradeiro esforço para consolar debaixo da lousa as cinzas de Vasqueanes. Foi um erro. Não importa!... Fá-lo-ei eu, o sacrifício; eu só, tremendo e ruidoso. Dois clarões havia no horizonte: um apaga-lo tu; resta o outro, sanguíneo e sinistro, para me esclarecer a estrada... O primeiro podia ser a aurora, não da felicidade, porque para nós ela é já impossível, mas da consolação; o segundo vem do poente: é o último clarão que rompe o negrume, acumulado ao anoitecer, da tempestade nocturna; é a tocha infernal que alumia a vingança, mas vingança que completará a desonra da nossa família. Olha, Beatriz, há muito que me anda aqui na cabeça cravada uma ideia. Não tarda o dia da procissão de Corpus: nesse dia à noite a tua velha cuvilheira virá contar-te uma horrenda história, de que Lisboa inteira há-de falar. Dir-te-á, ali, assentada àquele canto e persignando-se três vezes: «Na longa fileira das comunidades viam-se alguns frades do Colégio de S. Paulo. A uma das varas do pálio ia el-rei: seguiam-no todos os cavaleiros e escudeiros da corte, a pé, como de, e desarmados. Então, dentre esses poucos frades de Cister saiu um ainda moço e encaminhou-se para o lugar onde ia el-rei. Ninguém pensou em embargar-lhe os passos. Que importa um frade que vai ou que vem? Buscava alguma pessoa na turma dos cortesãos, e de feito chegou-se a um deles. Falou-lhe ao ouvido: o que lhe disse ninguém o percebeu; mas viu-se reluzir ao sol um ferro, e o cortesão caiu. Era um moço gentil! O frade pôs-lhe um pé sobre o peito que arquejava, e assim ficou a olhar de roda e a rir...

 

A donzela atirou-se aos pés do monge, abraçando-o pelos joelhos e exclamando:

 

– Vasco, Vasco, por alma de nossa mãe, tem dó de mim!

 

– Dias depois – prosseguiu ele, sem volver sequer os olhos para sua irmã – contarte-ão o resto, e dir-te-ão: «O frade, prenderam-no: não quis revelar a ninguém o segredo da sua vingança, e el-rei mostrou-se, com razão, inexorável. Arrancaram-no do fundo calabouço: tiraram-lhe solenemente as ordens; despiram-lhe as vestiduras monásticas; e entre apupos da gentalha conduziram ao patíbulo o último descendente de nobre linhagem; que de nobre linhagem vinha o frade. Era o que restava dela: um assassino! Minto. Ainda ficava no mundo una vergôntea da árvore derribada: era uma mulher prostituída.»

 

– Pois sim! pois sim. Que venha! Arrojar-me-ei a seus...... Tudo quanto tu quiseres.., tudo! – interrompia a desgraçada com voz quase imperceptível.

 

E Vasco sentiu nos joelhos o afrouxar do estreito abraço. Abaixou os olhos: a cabeça de Beatriz pendia-lhe para o lado; um gemido afogado veio ferir-lhe os ouvidos, e no mesmo momento viu-a cair como morta. O tanger dos dentes era nela o único sinal de vida.

 

Fora neste lance que a tia Domingas ouvira a voz do frade chamá-la duas vezes. Quando a velha entrou, Fr. Vasco estava encostado à ombreira da porta, com a cara escondida entre as mãos, e a donzela jazia desmaiada e de bruços no mesmo lugar onde caíra.

 

O monge, que parecia inteiriçado por um espasmo nervoso, recobrou, enfim, o movimento. Fez sinal a Domingas para o ajudar, e ambos conduziram Beatriz para a sua câmara. A agitação a reanimara. A cuvilheira ficou sozinha ao lado de sua ama, que parecia respirar mais soltamente, como quem dormitava. Passado um largo espaço, durante o qual o cisterciense se entretivera a ajuntar as cartas de Fernando Afonso, que cuidadosamente guardara, e no seu ir e voltar de uma para outra parte, a tia Domingas ouviu-o chamá-la de novo mansamente.

 

«Nosso padre S. Bernardo me perdoe», pensou ela; «mas o frade é o diabo. Que me quererá o maldito agora?»

 

Quando a viu assomar, Fr. Vasco parou e, olhando na direcção da câmara, inclinou para trás a cabeça e estendeu a mandíbula inferior, como interrogando a cuvilheira acerca de Beatriz.

 

– Dorme – respondeu a velha. Bem sabia ela se dormia. O monge sorriu.

 

Dormir!

 

A um seu aceno, Domingas aproximou-se. Então, tirando debaixo do escapulário uma bolsazinha, o cisterciense pô-la sobre a espécie de trípode em que estava a lâmpada. Involuntariamente, a beata foi-se chegando mais. Dera-lhe o coração um pulo. Sem saber porquê, a teiró que tinha a Fr. Vasco sentia-a diminuir de intensidade como uma espécie de prazer semelhante ao que experimentamos quando, depois de dia abafado da canícula, vem pela tarde a brisa do mar refrigerar-nos o sangue e restituirnos às fibras lânguidas o anterior elastério.

 

– Mulher – disse o moço frade, apontando para a trípode –, aquela bolsa é tua; mas hás-de executar a risca o que te vou ordenar.

 

Estas palavras abruptas eram as primeiras que nessa noite ele dirigia à senhora Domingas do Sacratíssimo Lado, que não gostou do tu grosseiro, nem da brutal designação de mulher, posto que a oferta fosse assaz melíflua e, por assim dizermos, um afago após uma bofetada. Abrindo muito os olhos e volvendo-os alternativamente para a bolsa e para o cisterciense, a matrona respondeu sem titubear:

 

– Lá quanto a isso, é alma que caiu no inferno, salvo seja. Em comparação: é como se o dissesse àquela parede, com perdão de vossa reverência.

 

– Bem está – prosseguiu Fr. Vasco. – És aldeã. Talvez nunca visses a procissão de Corpus em Lisboa...

 

– Nunca vi a procissão de Corpus?!... Que diz vossa reverência? Nunca deixei de a ver. Meu rico senhor S. Corpus Christi! Lembra-me, sendo eu tamanina, em tempo de el-rei D. Afonso: Deus lhe fale na alma, que era um santo rei: daquela laia de reis já não há; e mais este é bom, diz o povo. Como eu ia contando, naquele tempo um tio meu, que era carniceiro, um rapagão como uma torre, fazia o papel do imperador que levam os do ofício. Outro tio meu quase sempre era um dos diabos dos esparteiros, e até no ano da grande peste, parece-me que foi ontem, fiz eu de anjo dos especieiros, e uma prima...

 

– Basta, basta!– interrompeu Fr. Vasco.– Quem te pergunta por isso? Sabes, portanto, que el-rei vai a pé, com os principais senhores que se acham em Lisboa, às varas do pálio; que o acompanham os oficiais, cavaleiros e escudeiros da sua corte, e que nesse dia o povo se mistura com os fidalgos, e pode qualquer aproximar-se de elrei...

 

– Lá isso é verdade! – murmurou a velha com visíveis sinais de inquietação. – Mas, se vossa reverência tem alguma petição ou recado para ele!...

 

– Deixas-me falar, mulher?! – atalhou o frade, já impaciente. – Não; não é para ele. Toma sentido. Conheces um certo escudeiro, mancebo e gentil-homem, chamado Fernando Afonso, que é camareiro-menor de el-rei?

 

– Tenho ideia; tenho ideia do sobredito... Não ponha vossa reverência mais na carta – respondeu a tia Domingas, deslizando um risinho de inteligência e arregaçando a mandíbula superior ao longo de um grande dente solitário que lhe restava na boca. – Que estavanado! Sei-lhe da vida...

 

– Que sabes tu dele, que sabes?! – acudiu impetuosamente o cisterciense, cuja perturbação se lhe pintava no gesto.

 

– Ora, que hei-de eu saber? Diabruras; rapaziadas. É fruta do tempo. Ai, Virgem santíssima! Fazer o que fez à filha de mestre Inofre, o tosador da Rua das Esteiras! Se aquilo era uma tolaça! Olhe, eu não sei se ele é amigo de vossa reverência, por isso me calo; mas sempre digo que andar assim à roça da filha de mestre Bertolameu, um homem tão capaz, não é bonito. Fuge-te partes aversas! Vai tudo numa poeira com ele: dizem. Destas sei eu.

 

O monge, que não conhecia o tosador, nem sabia quem era mestre Bertolameu, recobrou as aparências de serenidade de que se revestira a princípio. As palavras da beata tinham-no feito recear que a deplorável história de sua irmã fosse já demasiadamente sabida.

 

– É esse mesmo – prosseguiu ele – o camareiro-menor... Qualquer a quem perguntasses te diria: «É aquele!» Agora testa explicar-te o que exijo de ti. No dia da procissão, em que de forçosamente há-de ir na comitiva de el-rei, não o percas de vista. Quando vires momento oportuno, no meio da confusão e tumulto, aproxima-te dele e dize-lhe que uma dama, cujo nome te foi proibido revelar, pretende falar-lhe nessa mesma noite. Indica-lhe um lugar onde haja de encontrar-te e conduze-o aqui.

 

Domingas olhava espantada para o frade, que lhe dava tão estranha incumbência com tal ingenuidade, que não sabia a boa da velha o que pensasse do caso. Com sobeja experiência do mundo, fora justamente o modo natural e singelo que Fr. Vasco afectava que a fizera desconfiar daquela singular missão. Costumada a avaliar as cousas, antes de tudo, nas relações que podiam ter com o próprio bene esse, suspeitou que as palavras do monge fossem um laço armado à sua imprudência. O cortejo de Fernando Afonso à filha de mestre Bertolameu tinha sido, acaso, observado por ele, que o poderia supor dirigido a sua irmã. Que entre os dois se havia passado uma cena violenta, era o que o estado em que, subindo, achara Beatriz tornava indubitável. Fino devia ser o frade para a pilhar com a boca na botija, se houvesse alguma emburilhada, quanto mais estando segura da sua consciência. Estas reflex5es passaram rápidas pelo espírito da cuvilheira, que buscou logo terreno sólido onde pudesse combater com vantagem o seu adversário. Por isso, apertando as mãos na cabeça, exclamou:

 

– Santo breve da marca! Um religioso, como vossa reverência, falar em tal a uma dona recatada, como Domingas do Sacratíssimo Lado! Vossa reverência está decerto gracejando. Eu! eu levar semelhante mensagem a um desbragado daqueles, em dia de S. Corpus e na procissão e diante do senhor sacramentado e nas barbas de el-rei, que costuma ir ali com a sua real opa, tão majestoso e grave que faz tremer! Oh, minha Virgem Santa da Escada da Igreja de S. Domingos, que é o meu padrinho e o santo do meu nome! E que diria Fr. Isidoro, o meu confessor, em sabendo que eu tinha trazido comigo, de noite, às escuras, um mocetão daqueles para o introduzir sorrateiramente nesta casa, que até hoje, Deus louvado, tem sido um convento! Vossa reverência querme deitar a perder e a sua irmã...

 

– Cal-te, faladora tonta e impertinente – bradou colérico Fr. Vasco, batendo o pé na casa e num tom que não admitia réplica. – Ordenei-te, acaso, que falasses de amores a Fernando Afonso? Não podem existir outras relações entre uma nobre dama e um gentil escudeiro?

 

– Mas vossa reverência não vê que somos duas donzelas recolhidas e vergonhosas...?

 

– Silêncio! – atalhou de novo o monge no mesmo tom. – E quem te disse que eu não estaria aqui? Crês-te, porventura, mais interessada na reputação de Beatriz que seu próprio irmão? Acabemos com isso, mulher. Ou receber aquela bolsa ou abandonar esta casa. Dou-te tempo para pensares; mas não há meio termo. E preciso escolher.

 

Proferindo estas palavras, Fr. Vasco meteu as mãos na correia que o cingia e começou a passear novamente, parando de espaço a espaço e escutando à porta que, ao longo de um corredor estreito, conduzia à câmara de Beatriz. O profundo silêncio só era interrompido pelo quase imperceptível ranger das alpargatas do frade. Domingas seguia-o com a vista, mexendo a cabeça como uru mandarim de porcelana da China.

 

– E se ele... Valha-me Nossa Senhora!... Se ele teimar à mão de Deus padre que lhe diga o nome da bela dama? – reflectiu, como a medo, passados alguns minutos, a tia Domingas.

 

– Proibi-te que o revelasses – replicou friamente o incansável passeador.

 

– E se por isso recusar acompanhar-me?

 

O frade encolheu os ombros, continuando a passear, e respondeu com o mesmo feroz laconismo:

 

– Despedida.

 

Não duvidara um momento de que o aventureiro mancebo aceitasse um semelhante convite, por este mesmo mistério em que se envolvia.

 

O gesto de Fr. Vasco, os seus movimentos de impaciência, as suas ameaças, o tom decretório em que falara haviam, enfim, desenganado a cuvilheira de que o dilema que lhe fazia era, posto que inexplicável, sincero, e as últimas perguntas da tia Domingas o que provavam era que estava resolvida a obedecer – As dificuldades que ponderava tinham sido apenas uma astúcia de Sancho Pança para não cair de salto em condescendência contraditória com os escarcéus que a princípio alevantara. Imitava, sem o saber, os gladiadores moribundos nos circos romanos: queria cair bem; e caiu.

 

– Enfim, como vejo que aperta, será vossa reverência servido. E sabe porquê? Eu lho explico. Quando o padre-mestre se foi, disse-me: «Senhora Domingas, que por senhora me tratou sempre, obedeça a Fr. Vasco, assim se diz na ausência, como outro eu. Ele é o verdadeiro protector de Beatriz.» Portanto, reverendíssimo, visto que vossa reverência não quer ouvir nem das más nem das boas, lavo daí minhas mãos. E mais juro-lhe que não é pelo interesse: é porque sou muitíssimo obrigada àquele santo de Fr. Lourenço, e como vossa reverência faz as vezes dele... Ora com licença, diga-me vossa reverência cá. Então sempre quer que seja nesse dia e que fale ao gentil escudeiro na procissão de S. Corpus?

 

Fr. Vasco reflectiu um momento.

 

– Poderia ser noutro, talvez... Porém, não! Obedeçamos à primeira inspiração... Quanto ao modo de executares o que te ordeno, tens plena liberdade de excogitar os meios. O ensejo que te indiquei é mais seguro: antes ou depois, ser-te-ia, talvez, impossível. Entretanto, o que me importa é que o camareiro-menor se ache aqui nessa noite, e que o véu do mistério lhe esconda o nome de quem te enviou e o nome de Beatriz. O resto pertence-te a ti.

 

Dito isto, o moço cisterciense encaminhou-se para a câmara de sua irmã, chegouse ao leito e escutou atentamente o respirar da desgraçada. Domingas tinha-o seguido. O monge tirou debaixo do escapulário uma ambulazinha cheia de um excelente cordial e entregou-a à cuvilheira, explicando o modo de o ministrar logo que Beatriz saísse daquele letargo. Cruzou depois os braços e, cravando os olhos no gesto transtornado de sua irmã, ficou por alguns instantes absorto.

 

Posto que, unido com o abade de Alcobaça num pensamento profundo de rancor, houvessem ambos jurado vingança implacável contra o camareiro-menor posto que, digamos assim, tivesse vendido alma e corpo a D. João de Ornelas, o desejo de salvar Beatriz e de remir a desonra da sua família lhe fizera conceber a esperança de que para Fernando Afonso ainda houvesse um darão de arrependimento. O mancebo, cujos generosos instintos a desventura não pudera envilecer, quase acreditava que a situação e as lágrimas da tão meiga e tão desgraçada vítima seriam capazes de despertar, ao menos pela piedade, alguma centelha da afeição antiga naquele coração gasto e gélido, que ele tão mal conhecia. Os remorsos, a que o arrebatamento de paixão insensata outrora o condenara; os fantasmas de terror, que o duro leito da penitência e a estamenha monástica não haviam podido ainda afugentar dos seus sonhos, eram a expiação de um assassínio. Qual seria a de outro? Quando, longe do abade, se punha a cavar nesta ideia, horrorizava-se. E se o terrível legado que seu pai moribundo lhe herdara e o próprio orgulho não lhe consentiam esquecer uma grande afronta, o longo padecer tinha, sem que o percebesse, afrouxado muito a tensão indomável do seu carácter. Era para ele uma espécie de alívio tentar um derradeiro esforço para se abster de mais sangue, embora pesasse depois sobre a sua cabeça o ódio implacável de D. João de Ornelas.

 

Fr. Vasco despertou, enfim, da espécie de meditação extática em que se embrenhara, voltou ao aposento do lavor, cobriu-se com a cogula e saiu, não sem se voltar para trás, ao transpor o limiar, para fazer novas e ameaçadoras recomendações à tia Domingas acerca do segredo absoluto no negócio de que a incumbira.

 

Apenas o monge saiu, a velha pegou na bolsa, virou-a mansamente sobre uma arca e viu que os seus contentos eram dez magníficas dobras validias. Tornou-as a meter dentro, coando-as e remirando-as uma a uma entre os dedos, e escondeu a bolsa no seio, enquanto mentalmente fazia o solilóquio seguinte:

 

– Agora, agora! E nem de tal me lembrava! Em lhe dando os sinais da casa, pensa logo que é a filha do mestre Bertolameu... Espera lá, que já vai! O diabo é não o tirar eu bem por feições... Não importa; que quem tem boca vai a Roma. Ao recolher da procissão, no barulho... ou ao sair? Algures será. Mas que emburilhada é esta? O frade tem demónio. Queira Deus; queira Deus! E que tenho eu com isso? Bem fiz em não alugar o meu buraquinho de Restelo e em dar a chave a Isabel Anes para mo arejar. Aqui anda história!... Hum! Não me cheira. Minha domna é uma santa: mas este monge, este monge! Dizem que é o companheiro do abade de Alcobaça. Do abade de Alcobaça! Virgem bendita! É má casta de frade... Contam cousas... Minha mãe santíssima, livrainos de más línguas e de juízos temerários. Se voltaria hoje Fr. Isidoro? Havia de voltar. Amanhã irei a 8. Francisco. Deus permita por sua infinita misericórdia que não me esqueça à volta comprar um púcaro de Estremoz. Se a vizinha estará ainda à janela? Estou morrendo por saber o resto do caso da filha de mestre Inofre. Talvez me venha a servir...

 

Um débil gemido de Beatriz veio interromper o curso majestoso das ideias da tia Domingas; ideias profundas, concatenadas, harmónicas e úteis como as reformas governativas feitas em Portugal nos últimos quinze anos. A velha correu então apressada a ministrar a sua ama o reanimador elixir.

 

FIM DO TOMO I 

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