O Monge de Cister: Tomo I IV - A FESTA DA MAIA
As gentes juntas em desvairados bandos de jogos e danças por todalas praças com muitos trebelhos.
FERNÃO LOPES, Cr. de D. João I.
Na época em que se passaram os factos contidos nesta história, que não cede em verdade à mais campanuda e edificativa do Flos Sanctorum de Ribadeneira ou de Fr. Diogo do Rosário; nessa época, dizemos, quem, subindo pelo Tejo acima, contemplasse a margem direita do rio teria que ver um painel bem diferente do que ela actualmente apresenta aos olhos do navegante que, afeito às solidões do céu e do oceano, se engolfa na magnificente baía da velha Lisboa. Esses milhares de edifícios que, semelhantes a uma longa cauda alvacenta, a cidade estira até Pedrouços, acompanhando as sinuosidades da margem, ainda não existiam. Esse alto, onde hoje campeia o monstruoso fragmento de uma absurda e monstruosa concepção, o palácio egípcio-gregoromano-jesuítico da Ajuda, era uma brenha intratável. Belém não existia, e pelas altas barreiras do Alcântara, sobre o qual já então havia uma ponte, pouco mais ou menos como a de hoje, fazendo o devido desconto da estátua do santo mártir advogado das pontes, que ainda então não era nem santo, nem mártir, nem nascido; pelas altas barreiras do Alcântara, entre os barrocais, verdejavam as vinhas, que desciam em anfiteatro até o fundo do vale, por onde ele se vai deslizando preguiçoso e pobre, condiç6es que, diga-se aqui de passagem, dão ao bom do rio um profundo carácter de nacionalidade.
Estas vinhas, misturadas com algumas hortas e olivais, espalhando-se pelas alturas de Buenos Aires e estendendo-se para o lado de Santos, espécie de burgo que já se chamava assim, corriam até o outeiro conhecido hoje com o nome de Bairro Alto. Era pela assomada oriental deste monte que a cidade findava do lado do poente. El-Rei D. Fernando I lhe dissera «não passarás daqui» e cingira-a com uma cinta de muros, torres e barbacãs, que por esta parte corria desde o Largo de S. Roque, quase numa linha recta, pelo Largo do Loreto e Tesouro Velho até o Ferregial. Foi no ano de 1373 que, vindo el-rei do Alentejo, «começou de cuidar (diz Fernão Lopes) no mal e dapno que o poboo da çidade avia reçebido por duas vezes dos castellãos e como espiçiallmente ouverom gram perda dos moradores de fóra da cerca em gramdes e fremosas casas, e mujtas alfayas, e outras riquezas que levar nom poderom com-sigo, quando elrei de Castella veo sobre ella; e esto porque mujtas das mais rricas gentes moravom todos fóra em huum gramde e spaçoso arravallde que avia arredor da çidade, des a porta do ferro ataa porta de Santa Catellina, e des a torre d'Alfama ataa porta da crus; e veendo elrei como esta soe çidade era a melhor e mais poderosa de sua terra, e que em ella prinçipallmente estava a perda e defenssom de seu reino, desahi como fora dapnificada dos enimyguos por fogo, e outros malles que avia rrecebidos, de que el tinha gramde semtido; determinou em saa vomtade de a çercar toda arredor, de booa e defemssavell cerca; de guisa que nenhum rei lhe podesse empeecer, salvo com gramde multidom de gente, e fortes artefiçios de guerra». Este pensamento, posto em execução e levado a cabo em dois anos, salvou daí a pouco Portugal das garras de Castela. Mas quando os tributos da África e as riquezas do Oriente caíram como orvalho sobre a cidade dos muitos séculos, ela, desmentindo as palavras de D. Fernando e semelhante a um velho carvalho, começou a brotar renovos pelas fendas do seu córtex de pedra. Dir-se-ia que as armadas portuguesas, carregadas com os despojos do mundo e malsofridas de tanto peso, iam lançando ao longo da praia, desde a cidade até Restelo, montes de ouro e especiarias, que as mãos dos senhores dos mares convertiam logo em templos e em palácios. Foi nos fins do século XV e principalmente por todo o XVI que essa cidade maravilhadora de olhos estrangeiros começou a despontar pelo alto de Santa Catarina e a descer risonha para os outeiros e vales do ocidente. Até aí, escondida para além dos seus muros, abrigada aos pés do seu castelo mourisco, que era apenas o que se via ao longe, como que envergonhada da sua pequenhez, confrangia-se e apoquentava-se a si própria na cinta de muralhas de que a cercara D. Fernando, cioso da sua formosura. Era então como a filha donzela e inocentinha do honrado e guerreiro Portugal, bom soldado da Idade Média, a quem riquezas de conquistas e embriaguez de glórias fizeram dissoluto, e a dissolução fez antes da velhice caduco. Lisboa, a sua filha, graciosa, pudica, pura na antiga pobreza, cresceu na abundância e no luxo, quebrou o cinto que lhe dera o último rei da primeira raça e, trepando o monte ocidental que a encobria, sorriu-se e chamou, como mulher perdida, os estrangeiros que passavam. Eles, mais corrompidos que ela, saciaram-na de vícios e de abominações. Hoje aí está assentada ao pé de seu velho pai. Ele, Veterano tonto, afasta os farrapos que o cobrem e mostra as cicatrizes de mil batalhas e, levando a mão à fronte calva, procura os louros de novecentas vitórias; mas as cicatrizes estão cobertas de vermes, e os louros desfolhados por mãos de nações de que há dois ou três séculos havia já tal qual notícia no mundo. Ela, vestida com andrajos de brocado, ainda formosa, mas descorada e abjecta, quer sorrir-se lascivamente aos estranhos; porém os estranhos que passam, se honestos, seguem avante, meneando a cabeça; se corruptos, passam uma noite no seu regaço e, ao partir no outro dia, cospemlhe nas faces, dando urna gargalhada.
Cidade, donzela e pura do século XIV, porque rasgaste o teu véu de inocência? Porque quebraste o cinto que te dera o rei que tanto te amou? Porque te aproximaste à foz do Tejo, convocaste os estrangeiros e converteste a tua morada em lupanar? Foi porque teu pai perdeu na idade grave as virtudes da idade viril. Foi porque ele te entregou a ti só as riquezas que conquistara por todos e para todos os seus filhos, e tu o fartaste de deleites e dissoluções, e embriagado se te deitou aos pés como escravo. É por isso que os vêm buscar os últimos fios de ouro do roto brocado que te cobre ou arroxear-te as faces sem pudor com os últimos beijos de uma sensualidade hedionda e bruta calcam o velho que dorme a teus pés o sono da embriaguez. É por isso que tu ouves ao longe, na terra e nos mares, um som vago de risadas de insulto, um apupar de gentalha em línguas bárbaras. Riem-se de ti, desgraçada! riem-se do Portugal que fez muitas vezes enfiar de terror os avos dos que ora fazem de ti baldão. Este rir, este apupar é a voz do teu opróbrio. Quando hás-de tu ser quem foste, oh terra de D. João I?
– D. João I?! Ora essa! – exclamará algum dos nossos leitores. – Deixai-nos com D. João II Pobre bruto, que não sabia nem conhecia nada: nem os falanstérios nem os charutos da Havana, nem a mnemotécnica nem a pirotécnica; nem o sistema eleitoral, nem as pílulas de família; nem os cupões, nem as velas de estearina; nem as inscrições, bondes e carapetões, nem os dentes postiços. Que temos nós, homens do progresso, da ilustração, da espevitada e desenganada filosofia, com esses casmurros ignorantes que morreram há quatrocentos anos?
Tens razão, leitor. Fecha o livro, que não é para ti.
O peditório para Fr. Lourenço ir visitar a pobre mulher que se morria fora feito na véspera à tarde ao porteiro de S. Paulo, Fr. Julião, que, conhecendo o carácter de Fr. Lourenço e receando que nessa mesma tarde quisesse acudir à desventurada, o que o podia obrigar a ele a deitar-se a desoras, calara o negócio consigo. Um mouro que viera fazer com instância aquela súplica, farto de esperar resposta, atreveu-se a perguntar ao reverendo leigo se dera o recado, ao que 1k. Julião acudiu, com um aspecto entre risonho e de sobrecenho, perguntando se ele queria acompanhar sua reverência.
– Assim é preciso para ensinar a pousada – respondeu o mouro.
– Ora pois – replicou o leigo com ar de protecção –, o reverendíssimo diz que não pode ir hoje, mas amanhã não faltaremos. És de Restelo?
– Padre, sim – tornou o mouro. – E esperarei amanhã na praia pelo vosso sacerdote para o guiar aonde jaz a mesquinha.
– Isso mesmo. Dize a quem te mandou que confie na nossa caridade. E tu vai-te com Allah... (que é o diabo – acrescentou Fr. Julião em voz baixa, e benzendo-se –, assim Deus me perdoe...) Adeus, amigo; que já tocou uma vez à segunda mesa do refeitório.
E a porta, rodando lenta nos quícios, bateu suavemente na cara do mensageiro.
Então o mouro puxou para a cabeça o capelo do albornoz e partiu.
No outro dia, quando Fr. Lourenço safa da cela, correu a ele Fr. Julião e disse-lhe que um mouro viera aí pedir a sua reverência para ir ver uma pobre mulher que se morria e que a ele se queria meenfestar, acrescentando que o mensageiro partira logo; mas que iria esperá-lo na praia de Restelo para lhe ensinar a pousada da penitente.
«Um mouro», pensou Fr. Lourenço, «mensageiro de uma crista que pede confissão?! Aqui há mistério».
E chamou Fr. Vasco para o acompanhar.
A aldeia de Restelo, situada a uma légua de Lisboa, dentro do distrito chamado desde as épocas mais remotas da monarquia o reguengo de Algés, o qual compreendia todas as aldeolas e campos ao ocidente e nordeste da cidade, por duas léguas ou mais de distância, era no século XIV habitada em grande parte por mouros forros que nos arredores granjeavam algumas hortas e pomares, de que ajudavam a abastecer a cidade, ou por pescadores que daí saíam em seus batéis a pescar no Tejo. Grande parte destes pescadores eram também mouros, ou livres ou escravos. Restelo, como quase todas as aldeias das cercanias de Lisboa, ainda quase que parecia uma terra muçulmana no fim do século XIV; ainda então avultava entre a raça goda e cristã a raça africano-árabe. Até esta época, ou antes até quase o fim do século seguinte, as Espanhas ofereciam um fenó- meno único, talvez, na história: o de três povos, sectários de três religiões inimigas, vivendo juntos e cada qual adorando Deus a seu modo, sem que por isso viessem às mãos, apesar de todas essas crenças serem persuasões profundas e por consequência exclusivas. As três religiões eram o cristianismo, o islamismo e o judaísmo: o primeiro dominante, o segundo tolerado e o terceiro consentido. Nobres, cavaleiros e o grosso dos burgueses pertenciam ao primeiro, os homens de trabalho, em boa parte, ao segundo, os mercadores, em grande número, ao terceiro. E acima do Evangelho e da Toura e do Alcorão havia um livro que fazia o que nunca souberam fazer os comentadores de cada um deles; um livro que os conciliava. Este livro era a lei. A lei protegia os diversos cultos nacionais, sem que, todavia, compreendesse inteiramente a tolerância como nós hoje a compreendemos. Nenhuma admiração deve, talvez, causar esta protecção relativamente ao judaísmo; porque a favor desta crença falavam as riquezas dos seus sectários; mas o que em verdade espanta é a tolerância, quase diríamos o favor, que achava no ânimo dos legisladores o islamismo. A maioria dos mouros era escrava e pobre, e além disso eles tinham sido, havia apenas dois séculos, inimigos armados, adversários duros e senhores das terras que ora cultivavam servos. Ainda, além disso, um reino mourisco subsistia em Espanha: Granada – Granada, mãe de valentes soldados e donde podia partir o raio que derribasse mais de uma cruz levantada sobre mesquita convertida em catedral; e todavia estes homens achavam amparo nas leis dos seus vencedores. Por algumas destas leis, feitas na primeira metade do século XV, chegaram a ficar sujeitos a graves penas aqueles que ousavam ofender esses desgraçados na única herança que lhes restava, a religião de seus pais.
Todavia não se creia que os legisladores ou o povo eram tíbios na f é. Como religionário, o cristão detestava ou antes desprezava o mouro e o judeu; como cidadão, vivia e tratava com ele. Nas leis relativas a estas duas raças réprobas não há uma só palavra que revele hesitação ou indiferença religiosa; mas vê-se que à sua promulgação presidiu a sabedoria. O fanatismo cego, bruto e feroz veio-nos com as primeiras luzes de uma falsa civilização, nos fins do século XV, e progrediu com ela por todo o XVI. Dantes, a raça cristã tinha a consciência de uma grande superioridade religiosa e fazia-a valer na legislação; mas não confundia a crueldade com as distinções que nascem da diferença entre o superior e o inferior.
Desta tolerância político-religiosa era prova o que sucedia em Restelo quando Fr. Lourenço e Fr. Vasco aí chegaram. Dissemos que a viagem dos dois frades fora no dia em que a Igreja celebra os nomes dos apóstolos Filipe e Tiago. Até os nossos dias durou o antigo costume, que nos herdaram os pagãos, de festejar nesse dia a vinda da Primavera; mas, posto que a tão grande distância dos séculos de paganismo, esta espécie de culto idólatra estava tão enraizado no ânimo do povo que foi para ele caso de grande escândalo quando a Câmara de Lisboa, querendo pagar a Deus em moeda de boas obras a vitória de Aljubarrota, proibiu as festas das maias e janeiras «esguardando (diz a postura ou lei municipal) alguns graves peccados que se em esta cidade de mui longos tempos acá faziam, e estremadamente peccados de Dollatria e costumes dapnados dos gentios». E por isso ordenaram os alvazis e os vereadores que daí em diante «nenhuma pessoa nem usasse nem obrasse de feitiços, nem de ligamento, nem de chamar os diabos, nem descantações, nem d'obra de veadeira, nem obrasse de carantulas, nem de jeitos, nem de sonhos, nem d'encantamentos, nem lançasse roda, nem sortes, nem obrasse de adivinhamentos» – proibindo igualmente o «medir cinta, e lançar água pela joeira», e rematando por substituir as janeiras e maias com procissões mui devotas, que realmente não deviam divertir tanto o povo como os seus antigos e costumados folguedos.
Todavia, nas comunas dos mouros ou mourarias e nas povoações por eles principalmente habitadas a lei da Câmara não podia por certo ter vigor; porque não estavam sujeitas às usanças cristãs, nem havia aí procissões que remissem as maias para quem não cria em procissões. Nada nos dizem os velhos documentos a este respeito; mas pelo texto desta autêntica história verá o leitor realizadas as nossas bem fundadas conjecturas.
Seriam dez horas da manhã, quando os dois frades abicaram à praia de Restelo. Parecia toda a aldeia endemoninhada, tanta e tão confusa e desentoada era a bulha, matinada e ingresia, que aí soava. Era o caso que a mourisma da povoação festejava naquele dia a maia, tanto mais desafogadamente, quanto os cristãos, coibidos pela recente postura da Câmara de Lisboa, não ousavam vir envolver-se no tumulto, contentando-se com observar, dois aqui, três acolá, às bocas das vielas e becos, aquele imenso folguedo, chorando lá no fundo de suas almas as bebedeiras que perdiam e as bofetadas e pontapés com que, como de ordinário acontecia nestas festas populares, se desforravam da maior abastança em que mouros e judeus viviam, por serem, regularmente falando, mais sóbrios, laboriosos e económicos que eles, bons discípulos do Evangelho.
– Olha, Marta – dizia para uma rapariga uma velha muito barriguda que estava assentada à porta da sua casinha, e cujos braços arqueados sobre o ventre apenas podiam cruzar-se pelas pontas dos dedos –, vês aquele perro de Muça como saiu hoje alfanado com sua aljuba nova e sua aljubeta verde, porque a negregada cadela da filha vai fazer de maia...? Pois a sandia! Não queres rir? Gastou dez alnas de ipre azul em uma almexia nova. Olha, sempre te digo, que pai e filha nunca os vi mais néscios.
– Ai, tia Domingas, néscio é quem é. Se eu fosse como aquela descarada, que anda metida com o Rui Casco da almuinha, também teria quem me desse, nanja dez alnas de ipre, mas vinte de brocado. Nem me faltariam chapins broslados...
– Ai, filha – acudiu a velha com um trejeito beato –, Deus se amerceie de nós! Essas são outras mil e quinhentas! O excomungado, andar de mancebia com aquela perra! Não! lá isso não! o maldito não acaba bem. O que eles mereciam era serem queimados. No meu tempo...
– No teu tempo, grandessíssima alcaiota, não tinham os segrais mancebas mouras, mas as mancebas haviam filhos de dérigos. Já te não lembras, minha vassoura de monturo, do cónego Fernão Matela? Ai, mana! Foram dois, ou foram três? A la fé que não o sei eu; mas sabe-se no hospital dos meninos enjeitados. Já cá me tinha soado que me andavas roendo nas costas. Que te importa a minha vida, pedaço de bruxa? An... an... an... anda, que é para teu ensino.
Este «an... an... an... anda» queria dizer que a velha estava agarrada pelas orelhas e que lhe volteava a cabeça entre duas mãos robustas e calosas, de um para outro lado, como a bússola de um navio entre as paredes da bitácula em dia de temporal desfeito. Infelizmente a tia Domingas, antes de começar o seu caritativo diálogo com Marta, não vira Rui Casco, que estava encostado ao sol do outro lado da esquina renegando talvez de não ser mouro para ir foliar na festa.
Marta, apenas vira descer as mãos de Rui Casco sobre as orelhas da tia Domingas, como o endiabrado Febo dos Eloméridas,
............................ semelhantes
A tenebrosa noite.......................
fugira a bom fugir, em virtude da seguinte fórmula algébrica:
A=B C=A ...C=B
E substituindo:
Maledicência da tia Domingas igual a um puxão de orelhas por mão de Rui Casco;
Maledicência de Marta igual a maledicência da tia Domingas;
Logo: maledicência de Marta igual a puxão de orelhas por mãos de Rui Casco. A pronta fuga era o resultado de rigorosa dedução matemática.
A velha sentia tais baques na cabeça e via tantos milhares de estrelas, apesar de ser alto dia e de fazer um belo sol de Primavera, que mal pôde piar estas palavras, quando os gadanhos do bruto hortelão lhe abandonaram as orelhas:
– Excomungado! Rufião excomungado!
E metendo-se para dentro da sua barraquinha, correu o ferrolho; e depois de passar a mão pela cara, a ver se tinha sangue, não o achando, tomou fôlego e desatou a berrar:
– Aqui-d'el-rei! aqui-d'el-rei! que me mataram.
Por mal de pecados, todos andavam mirando a festa da maia, e ninguém ouvia a velha, salvo Rui Casco, que tornara para o soalheiro e de quando em quando lhe atirava de lá uma apóstrofe que tinha a virtude de conservar sempre no mesmo alamiré agudo o berreiro da tia Domingas.
– Anda, barregã de cónego!
– Aqui-d'el-rei!
– Cala-te, basculho de clérigo!
– Aqui-d'el-rei!
– Fora, bareja de carne podre!
– Aqui-d'el-rei!
– Passa, serpente da Arca de Noé!
Esta era a mais atroz.
– Aqui-d'el-rei! aqui-d'el-rei! que me mataram.
Enquanto esta cena se passava por um cabo da aldeia, saía pelo outro o préstito da maia. A filha de Muça, que fazia o principal papel, vinha cavalgando uma formosa hacaneia levada de rédea por dois rapazes coroados de boninas e rodeada de mancebos e donzelas, do mesmo modo enramados de flores e cantando certas cantigas ao som de adufes e pandeiros, com uma toada mui de folgar. Atrás seguia-se toda a mourisma de Restelo travada em jogos de espadas, nos quais os pacíficos descendentes dos guerreiros almorávidas e almóadas se divertiam em fazer a caricatura de seus ilustres avós, ou enredados em coreias vívidas e variadas que só eles sabiam tecer e que por isso eram designadas pelo nome característico de danças mouriscas. Digno do pincel de Hogarth era o quadro que, bem como sobre uma tela pálida, se desenhava pelo extenso areal que corria entre a povoação e o Tejo. Cada qual tinha tirado à praça os mais ricos trajos que possuía. As diferentes fotas ou toucas mouriscas formavam como um xadrez de todas as cores, incertas, cambiantes com o agitar e tripudiar da multidão. Os mais ricos vinham vestidos com suas aljubas, vestido talar de mangas largas, sobre o qual traziam a aljubeta, espécie de colete comprido. Viam-se outros com seus balandraus, vestuário que até hoje conserva o mesmo nome e que as irmandades modernas herdaram deles, com a única diferença de que os mouriscos tinham uma espécie de escapulário (e essa denominação se lhe dava) cosido pelas costas abaixo, enquanto os que vestiam albornoz usavam o escapulário cosido a este por diante, Os pobríssimos, e deste número eram os mouros escravos, cobriam-se com tristes argaus, dos quais se pode fazer uma ideia exacta imaginando duas mantas de lã parda, tinidas por uma das extremidades, tendo apenas na costura o vão necessário para passar a cabeça. Nesta variedade imensa, que representava o préstito da maia, não faltaria ao debuxador a condição absoluta da arte, o pensamento que devia dar unidade ao quadro: era este o sentimento da alegria que ressumbrava em todos os rostos, desde o do grave alcaide ou juiz da comuna até o do mais mesquinho, esfarrapado e sujo dos verdadeiros crentes.
E a filha de Muça? A filha de Muça ia como uma sultana no meio dos seus eunucos e escravas. Não trocaria ela em tal momento a sua glória pela sorte da esposa querida do profeta. Sorria-lhe nos olhos negros e voluptuosos o deleite; e quem nesse dia visse a pobre moura que vendera a sua inocência ao rude quinteiro cristão tomá-la-ia pela virgem do deserto, que, rodeada de amadores, hesita na escolha daquele a quem há- de dar o seu coração, ainda livre como a carreira da gazela nas solidões profundas dos areais da Arábia.
Mas a filha de Muça era apenas uma planta de oásis açoutada pelo sopro do simum, Em um dia sereno erguia a fronte, como quando pura vicejava no princípio do existir. Mas a seiva da vida estava contaminada: o bafo impudico do homem é também como o simum. Flor de inocência, por onde ele passou não erguerá a fronte mais que um dia. Depois vem logo o pender e o murchar. Há aí então alguém cujos olhos ela contente? Não. Só o vento do deserto virá ainda uma e outra vez afagá-la com abraço infernal, até que lhe disperse a última folhinha, como o algoz espalha ao longe o último punhado das cinzas de um justiçado.
A flor que ainda erguia a fronte era Zila, a maia de Restelo; mas Rui Casco era o simum do deserto.
Quando, na extensa volta que dava o préstito, a mula em que Zila cavalgava passou perto do soalheiro do hortelão, ele soltou um suspiro maciço de amor. Pareceulhe Zila formosa como no primeiro dia em que a miséria lha vendera. Pensou então... Em quê? Em que era um longo dia de Maio. E suspirou de novo. A filha de Muça viu-o, abaixou os olhos e não sorriu mais. A rainha da festa trocaria já a sua sorte pela da última escrava do profeta.
Pobre Zila!
E ao redor dela os cantos e os adufes e os gritos e as risadas atroavam os ares. Homens, mulheres, crianças saltavam, corriam, volteavam. Aqui, alguns mancebos mais destros fingiam acometer-se, pelei arem, vencerem, serem vencidos: era o jogo de espadas. Acolá as raparigas dançavam em roda uma dança bárbara ao som de pandeiros: era a mourisca. Os jograis cantavam ao desafio canções improvisadas e satíricas em português semiarábico, e as crianças derramavam flores adiante de Zila ou sobre as cabeças dos maios pequeninos, que eram como os génios que circundavam a deusa da festa da Primavera.
O folguedo, porém, era incompleto. Faltava aí a alma, o tudo de semelhantes festas, O truão Ale, a quem os mouros chamavam por escárnio Cid Ale, os judeus rabi Ale e os cristãos mossém ou misser Ale, não viera com seus guizos e palheta, com suas visagens e arremedilhos, fazer estourar de riso os alegres festeiros da maia. A sua mesquinha morada, choupana colmada que se encontrava a pouca distância da aldeia, à beira de uma horta ou almuinha, já não era, havia perto de um mês, frequentada, como dantes, pelos foliões dos arredores, que estavam certos de encontrar aí um jovial consócio. Ale tinha-se tornado um modelo de gravidade e compostura. Quando não trabalhava no seu campinho ou não ia à cidade vender os produtos dele, passava horas inteiras assentado na soleira da porta, cantando em voz baixa uma cantiga monótona, bem diversa das que usava cantar. Via-se que um pensamento grande e moral ocupava o ânimo do truão. Notou-se, porém, na aldeia que, quando Ale vinha ao povoado buscar o seu provimento semanal de legumes, o fazia maior que dantes, e o que escandalizava sobretudo os mouros vemos e devotos era o cuidado com que sempre levava uma porção do melhor vinho que achava nas tabernas dos judeus, contra o expresso preceito do livro divino mandado do céu a Mohammed. Começavam a alevantar-se algumas suspeitas de que Ale se havia tornado cristão; mas ninguém ousava afirmá-lo com certeza; porque, habitando ele num sítio ermo, não havia quem o pudesse observar. Correu também fama de que neste negócio andavam encobertos alguns tardos amores, e a maior porção de alimentos de que usava abastecer-se confirmava a suspeita. Mas para que o esconderia Ale? As uniões menos puras eram naquele tempo uma espécie de panem nostrum quotidianum para cristãos, para mouros e para judeus, e quando o não fossem bastava ser Ale um truão professo, e de mais sectário do Alcorão, o qual não veda esse trato ilícito, para não lhe ser estranhada uma falta que para ele o não era e que, até para os cristãos, pela muita frequência, se tornara em acção indiferente, declarada como tal nas leis gerais do reino.
Todas estas reflexões e muitas outras faziam os ociosos e beatas de Restelo, que, semelhantes aos ociosos e beatas de todos os tempos e lugares, costumavam ocupar-se da vida alheia por não terem outra cousa em que consumir a própria. Perdiam, porém, o tempo e o trabalho. Se Ale conhecia que alguém lhe fazia perguntas capciosas, com a intenção de lhe pescar o seu segredo, escapulia-se sempre com algum daqueles ditos grosseiros e mordazes que o uso de muitos anos (de teria cinquenta) lhe fazia achar a ponto para embatucar importunos, e aos quais dificilmente se resistia; porque então, como hoje, ninguém tinha as costelas tão unidas que por entre uma ou outra não achasse fácil caminho a ponta azerada de uma chufa de bobo arremessada a tempo.
Assim todas as conjecturas saíam baldadas. O facto era que Ale estava outro homem: por isso não aparecera na festa.
O que ele fazia entretanto vamos nós espreitar no seguinte capítulo -
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