O Monge de Cister: Tomo I XIII - QUASE SUICIDA
Dos males em que ha cura
Todo benefycio val;
Mas o mal que é immortal
Quem lhe remedio procura
Perde todo o cabedal.
CANC. DE RES. Trov. de Álv. de Noronha.
–...Eis aqui, meu irmão, com que artes detestáJ5veis aquele homem cruel alcançou arrastar-me ao abismo. Agora examina tu por teus olhos como eu tive de medir lentamente, esmagada debaixo da mão de ferro de inúteis remorsos, a profundidade desse abismo de perdição e de miséria.
Assim falava a pobre Beatriz, referindo a Fr. Vasco a dolorosa história das suas desventuras. O monge quisera ouvir-lhe da própria boca essa terrível narrativa, a qual tinha sido mais de uma vez interrompida pelos soluços e lágrimas da desditosa, que exaurira, enfim, toda a energia que lhe restava em volver as negras páginas dessa história fatal.
O lugar da cena era um aposento modesto, mas decentemente adereçado, na Rua de D. Mafalda, rua velha como a Sé e da qual a rasoura do terremoto não deixou vestígios na moderna topografia de Lisboa – Próxima do Colégio de S. Paulo, prolongava-se por entre a pinha de casarias que, retalhada num sem-número de vielas de seis ou sete palmos de largo, cobria o terreno ladeirento limitado ao oriente pela rua que ia da Sé até as Portas de Alfofa, e ao sul pela de Santa Justa, a qual passava por fora do muro de D. Afonso III, desde o adro da igreja dessa invocação até o da Madalena. O mestre de Teologia, que vimos em Restelo providenciando tudo, não só para salvar Beatriz, mas também para tornar menos amarga a sua situação, concluíra a obra aí encetada destinando-lhe naquela rua pouco frequentada uma habitação humilde, mas onde nada faltava dos cómodos necessários à vida. Sem Fr. Lourenço, Fr. Vasco mal poderia ter suavizado a sorte de sua desgraçada irmã. Vestindo o hábito cisterciense, o moço cavaleiro reservara apenas uma limitada porção da herança paterna para não abandonar à miséria a velha idiota Brites, cuja tutela encarregara ao seu venerável pastor, doando o resto à Ordem de S. Bernardo, que lhe dera abrigo e lhe prometera a subsistência até o dia em que pudesse ir repousar debaixo de uma lájea do claustro, envolto nessa mortalha de estamenha que a ordem também lhe dera e que de vestira uma vez para não mais a despir.
É preciso, todavia, confessar que este foi um dos negócios que tirariam o sono a Fr. Lourenço, se um feliz acaso não tivesse vindo em seu auxílio, porque o padre-mestre não era homem que deixasse aquecer-lhe na algibeira o dinheiro – Era um mãos-rotas; e a sua ilimitada caridade extorquia-lhe rápida e insensivelmente até a derradeira mealha. Se pôde em Restelo ocorrer aos gastos das incumbências dadas ao chocarreiro e à velha, foi que nas vésperas recebera umas cinquenta dobras de D. Pedro e algumas dezenas de barbudas dos salários que se lhe deviam como leitor de Teologia no Colégio de S. Paulo, em conformidade do que deixara estabelecido o bispo-chanceler D. Domingos Jardo. Com essa pouco avultada soma o cisterciense fizera milagres. Dêmos, porém, o seu a seu dono. Naqueles arranjos Fr. Lourenço tivera uma hábil executora das suas ideias. A tia Domingas era uma jóia, e Ale podia gabar-se de ter posto o dedo na pessoa mais adequada aos desígnios do caciz cristão. Com admirável presteza e economia, a santa velha correra as tendas da Rua de Santa Justa e da enciclopédica Rua Nova, girara, espiolhara, mirara e remirara tamboretes, bancas, arcas, bufetes, côcedras, almocelas, manténs, roupas, pratéis, agomias, caldeiras e mais adereços domésticos: tinha apreçado, prometido, desdenhado, barateado e pago em pojeias de cobre (pelas quais trocara com lucro as dobras validias de Fr. Lourenço nos cambos ou lojas de rebatedores judeus e prazentins) pelos preços mais somenos e ratinhados que era possível. Foi, voltou, andou para trás e para diante, de corómem traçado, touca à banda e guedelhas caídas em desalinho; falou, gritou, bracejou, barafustou, suou e esfalfou-se, de modo que, à noite, não podia ter-se já nas pernas. Mas bem empregada lida! Quando, no outro dia, o mestre de Teologia veio examinar como as ordens que dera tinham sido cumpridas, não pôde deixar de exprimir o seu contentamento e espanto. O arranjo e o asseio de tudo quanto se via no simples e severo aposento eram admiráveis. Beatriz, assentada no estrado raso que então servia ainda, às mais nobres damas do gótico Portugal, de marquesa, sofá, otomana ou não sei que outros assentos esdrúxulos, em nome e feitio, que as modas estrangeiras têm hoje introduzido, empregava-se em bordar uma tela, mais delicada pelo lavor que aí se ia alevantando que pela finura do tecido, enquanto a tia Domingas, depois de ter dado contas ao monge, com um sem-número de notas, observações e comentários, que o secaram sofrivelmente, ia assentar-se num banquinho mais alto que o estrado e, metendo no clássico ourelo da cintura a toca tradicional, acompanhava com o submisso rangido do derriçar nas barbas do linho e com o leve zumbido do fuso os discursos cheios de suave unção com que, por largo espaço, o virtuoso sacerdote tentou consolar a alma atribulada da desditosa Beatriz, por cujas faces as lágrimas deslizavam a quatro e quatro sobre a tela que tinha ante si.
Apesar da actividade de que a bojuda tia Domingas dera tão irrefragáveis documentos; apesar dessa espécie de tonel das Danaides, de contínuo despejado e repleto, chamado a roca e o fuso (e aqui aprenderá o leitor como um fuso se pode comparar a um tonel), as suas ocupações, passada aquela primeira balbúrdia, não eram bastantes para nos deixarem mentirosos, se dissermos que a veneranda censora dos costumes depravados de Rui Casco achara, enfim, aquilo por que tantos lidam e que tão poucos alcançam, o otium cum dignitate de uma existência farta, pacífica e até, não diremos deliciosa, mas assaz espairecida. Bem agasalhada no seu pelote e saia nova de valencina e no seu corómem de arrás, com melhores bocados e habitação mais confortativa, conchegada e tranquila do que na pobre aldeia de Restelo, devia dar-se por completamente feliz, ao menos quanto feliz se pode ser no desterro deste mundo. Todavia, certa propensão que mais de uma vez lhe fora fatal (e disso vimos uma prova deplorável à porta da sua barraquinha em Restelo) a acompanhara, como verme roedor, para lhe toldar a límpida corrente da vida. Era o prurido crónico e sarnento do mexericar e bisbilhotar e moralizar acerca das vidas alheias. Era esta a cruz da senhora Domingas do Sacratíssimo Lado, nome integral da beata. Cuidou de estourar de silêncio nos dois primeiros dias que passou na Rua de D. Mafalda, e, se não fosse o conhecimento que em breve travou com uma cuvilheira da vizinhança, correra risco de algum acidente grave de mexericos recolhidos; porque, no meio daquela lida, nem sequer pudera dar uma saltada a 8. Francisco, aonde tinha a devoção de ir todas as semanas depositar nos ouvidos do padre Fr. Isidoro, franciscano de formas atléticas e letras gordas, as faltas do próximo de envolta com as próprias topadas e torcicolos na carreira da perfeição espiritual. Tirado este mas, e a tia Domingas cogitava seriamente em removê-lo, podemos dizer, sem receio de erro grosso, que a sua vida se escoava suavemente na Rua de D. Mafalda; porque, dotada de conformidade e resignação heróicas, não a afligiam demasiado as tristezas de Beatriz, nem as dolorosas vigílias das suas noites solitárias, em que a infeliz, a sós com as memórias do passado, invocava a morte, enquanto ela dormia a sono solto com o místico repouso e religioso egoísmo de uma pia e resignada devota.
Isto que vamos dizendo refere-se ao que sucedia poucos dias depois dos acontecimentos que o leitor presenciou, por ter tido a condescendência para connosco e para com Fr. Lourenço de nos acompanhar a Restelo. Agora que já lhe expusemos qual era a situação da tia Domingas, é necessário que lhe digamos o que foi feito do mouro truão, a quem não é possível que deixasse de ficar, como nós, afeiçoado. O mestre de Teologia tomara Ale debaixo da sua especial protecção, e não lhe fora difícil fazê-lo aceitar por sergente ou moço-de-porta-a-fora na estudaria. Verdade é que o converso Fr. Julião, inimigo declarado de tudo quanto cheirava a judaísmo ou maometismo, o recebera a princípio com a afabilidade com que um grave rafeiro recebe um gozo esperto e brincalhão, que o pastor lhe deu por companheiro na guarda do rebanho; isto é, rosnando e mostrando-lhe as presas. Não obstante, porém, a teiró do donato, como todos no Colégio de S. Paulo amavam e respeitavam Fr. Lourenço Bacharel, o mui reverendo porteiro não teve remédio senão ir-se habituando aos gracejos de Ale, que dentro daquela santa casa voltava frequentes vezes ao antigo humor jovial e mordaz, como se a consciência de ter praticado um acto nobre e generoso, abnegando de si próprio por causa de uma desgraçada mulher, houvesse apenas sido um paliativo temporário contra a loucura, meio natural meio voluntária, em que por tantos anos vivera e que de novo lhe reagia na alma, tendo-lhe faltado o estimulo moral, que durante algum tempo lhe emprestara a máscara de cordura, com que se compõem os loucos só por dentro, chamados homens de juízo.
O pensamento de Fr. Lourenço, trazendo consigo o mouro, fora conduzi-lo gradualmente a abraçar o cristianismo – Conhecera que no seio do chocarreiro batia um bom coração, como é vulgar encontrar-se nas últimas camadas sociais, onde o contínuo roçar das privações e dores predispõe os ânimos para a compaixão, e o bom do monge sabia que os olhos purificados pelas lágrimas da piedade facilmente se hão-de abrir sempre à branda luz do Evangelho. Mas D. João de Ornelas, semelhante a cometa perdido no espaço, que, aproximando-se dos orbes, os dissolve e incorpora no seu vulto ardente ou os atira para novas solidões, onde flutuam mortos, como nau abandonada sobre as vagas incertas do mar; D. João de Ornelas, que logo percebera não lhe ser possível amoldar inteiramente aos seus desígnios o mal-aventurado Fr. Vasco, enquanto não o separasse do robusto cedro que o amparava, enviara o mestre de Teologia por visitador aos mosteiros de Cárquere e Bouro, sob pretexto de que a vida monástica aí corria soltamente fora dos preceitos austeros da regra de S. Bernardo. O monge obedecera; e assim, ao passo que Ale parava na carreira de catecúmeno, Fr. Vasco precipitava-se para um tenebroso futuro, insondável ainda para ele, mas em cujo mistério a consciência lhe afigurava o que quer que era monstruoso e horrível.
Aproveitámos o silêncio de Beatriz para instruirmos o leitor da situação de algumas das personagens que têm intervindo nos sucessos que nos propusemos narrar, personagens que, tempo há, perdemos de vista. Agora pedimos-lhe cortesmente que volte de novo a atenção para o que se passava na Rua de D. Mafalda ao começarmos o presente capítulo; isto é, oito dias depois do grande conciliábulo na tavolagem das Portas do Mar.
No estrado pouco mais alto que o pavimento da câmara, ao qual já aludimos, estava assentada Beatriz. A luz de uma lâmpada de dois lumes, colocada sobre uma trípode de ferro, via-se passar pelo chão branco da parede fronteira uma sombra que se movia lentamente. Era o vulto acurvado e emagrecido de Vasco, o bom cavaleiro da ala de Mem Rodrigues nos campos de Aljubarrota, agora Fr. Vasco, vergando já para velhice prematura debaixo da mão férrea dos pesares. Sem consciência do que fazia, o mancebo passeava de um para outro lado do aposento, trazendo na mão um maço de pequenas tiras do que então se chamava pergaminho de papel, cuja raridade e frágil contextura faziam com que somente fosse usado quando havia a escrever cousas destinadas a terem curta duração. Eram muitas folhas oblongas de pequenas dimensões, dobradas cuidadosamente e cingidas, cada qual sobre si, com um nastro de seda de cores. O frade não despregava os olhos do maço, e por mais de uma vez, enquanto durava a narrativa de sua irmã, tinha parado como impaciente por desdar os nós que lhe impediam conhecer de antemão o último acto do drama doloroso cuja protagonista ela era, e cujo desfecho essas cartas deviam explicar-lhe – Conteve-se, porém, e logo que Beatriz, tendo recobrado alento, fez sinal de que ia continuar o que restava da sua história, o frade parou e, cruzando os braços, pôs-se a escutar de novo com a mais viva atenção.
– Assim – prosseguia ela – eu esperava, dia após dia, o momento em que pudesse dizer perante o mundo quanto amava esse homem, a quem sacrificara família, orgulho, virtude, liberdade, tudo; perante o mundo, como mil vezes lho dissera a ele perante o Céu; o momento em que pudesse lavar com as lágrimas suaves de uma felicidade pura e legítima o ferrete de infâmia que estampara no nome da nossa linhagem e em que obtivesse de nosso pobre pai o esquecimento e o perdão; de nosso pai, que eu e ele assassinámos, e cuja morte cuidadosamente me escondera. Trazia-me cega um amor crédulo, infinitamente crédulo, porque era infinitamente sincero: por isso cria quanto Fernando Afonso imaginava para alimentar a minha esperança; e posto que, às vezes, nos momentos em que solitária conversava com a própria consciência, uma voz de remorso e de terror me passasse cá dentro, quando ele voltava, as suas palavras afectuosas e os seus juramentos varriam-me do espírito essas ideias tristes, como o norte varre as nuvens que toldam momentaneamente o esplendor do Sol.
«Pouco a pouco, porém, começaram a perturbar-me o espírito inquietações mais vivas. Sentia que o seu amor esfriava. As suas palavras eram visivelmente estudadas, as expressões da sua ternura tinham o que quer que fosse triste, e a impaciência, que ele comprimia na alma, revelava-se-lhe no gesto e modos, sem que o percebesse. Oh, a quem ama com paixão ardente e profunda não é possível esconder o desamor, e eu amava-o com todo o enlevo de um coração que se lhe rendera ainda virgem! Meu irmão, tu que, no meio das desventuras da nossa família, buscaste abrigo à sombra pacífica do claustro; tu que, puro diante de Deus, mal sabes o que são tais afectos, não imaginas que infernal tormento seja o ter confundido a própria existência com outra existência, o ter edificado todo o nosso futuro sobre esse enlace íntimo e ver desvanecer-se o mais formoso, o mais santo dos sentimentos; ver decair, agonizar e morrer o pensamento de todos os dias, de todas as horas, de todos os instantes, e achar ao pé de nós, amarrado ao nosso amor cheio de viço e de vida, um amor contrafeito e gelado! Conhecia que esta era a minha situação, e ainda buscava iludir-me recuando ante a fatal realidade; porque a minha desgraçada afeição parecia redobrar, como se houvesse recolhido em si essoutra, que se extinguia.
O monge, que tinha os olhos fitos em sua irmã, com um sorriso de indizível amargura murmurou:
– Eu sei de mais fundas agonias!...
– Pode ser, Vasco – prosseguiu Beatriz –, mas eu experimentei-as. Contar-tas?... Como tas contaria? Que palavras podem pintá-las? Lê essas cartas. Saberás depois quanto a punição excedeu um erro que nunca poderei esquecer, senão quando a terra cobrir eternamente o meu opróbrio. Deus e Nossa Senhora tragam em breve tal dia!... E cobrindo o rosto com as mãos, desatou a chorar.
Os olhos de Fr. Vasco arrasaram-se também de lágrimas: eram de sangue que se lhe espremia do cotação. Correndo por eles a manga do hábito, enxugou-os, e com um movimento convulso foi assentar-se junto da lâmpada. Depois, quebrando os fechos das cartas em vez de os desatar, desdobrou-as e começou a lê-las pela ordem das datas.
Seria demasiado longo transcrevê-las aqui. Escritas, a princípio, com breves intervalos, tinham sobretudo por objecto explicar frequentes ausências de quem as escrevia. A imaginação de Fernando Afonso mostrava-se fértil em idear embaraços que lhe impediam, segundo afirmava, o ir testemunhar a Beatriz, mil e mil vezes, que o seu amor era tão vivo e ardente como no primeiro dia em que a amara. Posto que a linguagem do moço escudeiro revelasse por vezes a pouca delicadeza dos seus sentimentos, via-se, contudo, que tinha bastante dissimulação e astúcia para iludir a apaixonada credulidade de uma pobre mulher. Nas mais recentes, porém, que pareciam escritas em resposta a outras e cujas datas eram cada vez mais distantes entre si, escapavam de vez em quando, como clarões infernais, frases coléricas de impaciência contra queixas e terrores que o hipócrita sedutor fingia considerar como absolutamente infundados. Algumas pressupunham a existência de cenas violentas passadas entre ambos, e conhecia-se que era sempre Beatriz quem implorara piedade, quem se humilhara ante o seu tirano, em cujas respostas transluzia o despeito, porque a doçura e resignação da vítima lhe roubavam todos os pretextos para um rompimento decisivo. Devia ser bem profundo o abismo onde se despenhara a desgraçada, para aceitar este combate repugnante e para esgotar assim, gole a gole, o cálix da abjecção e do infortúnio. As cartas caíram então das mãos trémulas do monge, cujos olhos chamejantes, cujas faces incendidas, cujo feroz silêncio anunciavam uma crise terrível.
Fr. Vasco ergueu-se. Mediu o aposento a passos largos, de ângulo a ângulo. Parou de novo, cruzando os braços, e pôs-se a contemplar sua irmã, que, assentada no estrado, com a cabeça entre as mãos, sobre as quais lhes caíam desalinhadas as louras madeixas, semelhava a estátua da amargura, reclinada, como símbolo da saudade, nos degraus de um túmulo. A vida revelava-se-lhe somente no seio, que arfava com os mal comprimidos soluços.
Por fim alçou os olhos para o monge, que sem pestanejar tinha os seus cravados nela, e, com acento inexplicável de dor, murmurou:
– A última! a última!
De feito, o frade conservava ainda nas mãos uma carta. Começou então a examiná-la exteriormente com uma espécie de hesitação. Dir-se-ia recear que ao abri-la surgisse ante ele o que quer que fosse fantástico e diabólico. Enfiado, desdeu lentamente o nó e, não menos lentamente, desdobrou o papel fatal. Correu-o com a vista. Então compreendeu quantas agonias se resumiam no olhar e na exclamação de Beatriz.
Crer-se-ia que esse papel, que tremia nas mãos convulsas de Fr. Vasco, fora escrito com uma pena arrancada das asas negras do demónio da desesperação e da ironia.
Friamente, longamente, sem cólera e sem piedade, Fernando Afonso punha diante dos olhos de Beatriz o quadro medonho da situação da desventurada com toda a nudez da horrível realidade. Revelava-lhe que seu velho pai deixara de existir; que seu irmão, conforme o que todos diziam, aparecera e desaparecera nos paços paternos como um meteoro, e que também ou morrera ou abandonara a pátria. Ponderava que para ela a existência actual fechava-se a curta distância num horizonte de ferro e pendia unicamente da vontade do homem de quem se fizera escrava. Confessava depois que por muito tempo buscara ocultar-lhe o afecto ardente e irresistível que nutria por outra mulher; mas que, enfim, o protrair a luta com o próprio coração se lhe tornara impossível, e que ela apressara esta revelação cruel com o excesso de um vago ciúme. Jurava-lhe que, se, desiludido do seu amor, não podia vencer a paixão que o devorava, nunca se esqueceria dos deveres de cavaleiro para com aquela a quem devera um amor imenso e muitos dos mais deliciosos instantes da vida. Como condições, porém, da protecção que lhe oferecia, ordenava-lhe duas cousas: que não buscasse torná-lo a ver, nem tentasse descobrir a sua rival. Quanto à primeira, ele saberia impedi-lo; quanto à segunda, asseverava-lhe que todos os seus esforços seriam baldados para o obter; porque os laços em que se havia enleado eram um segredo sabido só dele, da sua amante e de Deus. «Para ti, Beatriz», concluía a carta fatal, «vai sorrir uma aurora de obscura e tranquila felicidade. Mas se acaso, cega de uma indignação inútil, quiseres lançar-te como obstáculo entre mim e o céu de ventura a que aspiro, sabe, pobre e frágil ente, que a minha mão de bronze iria esmagar-te sem remorsos, sem piedade e sem que o mundo sequer suspeitasse o teu inútil sacrifício».
Tal era em substância a última carta do moço escudeiro. Mal imaginava ele que verdade aí escrevera! Desses amores ocultos, cuja revelação dirigia como um punhal ao seio de Beatriz, sabia Deus. Ao tenebroso mistério a inexorável testemunha devia dar no dia da sua cólera uma publicidade terrível... Não antecipemos, porém, os sucessos, e sigamos, como até aqui, a ordem em que os achamos colocados no velho manuscrito.
– Oh, santa mãe de Deus! – prorrompeu, redobrando os soluços e lágrimas, a filha de Vasqueanes, quando seu irmão acabou a leitura. – Não caí morta ao ver esse papel horrível: não! Mas era forçoso morrer... Como ponto único no horizonte do meu futuro onde reverberava ainda alguma luz, no meio de trevas sem fim, aparecia-me a sepultura. O martírio do contínuo sobressalto, das vagas incertezas avivava-mo, em vez de o suavizar, a duvidosa esperança que ainda alimentava. Ela expirara enfim, e por alguns instantes quase que achei refrigério no desfalecimento da desesperação. Nessa espécie de medonha bonança, medi toda a extensão da minha desdita. Uma escrava que me servia, o tecto que me abrigava, os trajos que trajava, o pão que me nutria, era Fernando quem mos dera. Enquanto o preço das minhas poucas jóias bastou para me suprir, tinhame esquivado a aceitar as suas ofertas; mas, quando todos os recursos desapareceram, fora constrangida a consentir na sua vil generosidade, que ainda cria nobre e honesta. Abandonada por ele, o viver um dia mais que fosse naquela odiosa morada seria gravar mais fundo o selo da própria infâmia. Era preciso sair dali; porque essas paredes, esses adereços, essas alfaias, tudo parecia insultar-me. Mas em Lisboa não conhecia ninguém: não saberia sequer como atravessar essa multidão de ruas e praças, que, vivendo quase oculta, nunca ou raramente cruzara. «E que importa?», exclamei eu no auge do meu delírio. «Não conduzem todos os caminhos à morte? Ou necessito eu de testemunhas para esconder no seio dela a minha desventura e o meu opróbrio?»
«Era ao lusco-fusco da tarde. Duma janela do aposento descortinava-se a baía do Tejo na sua amplidão até onde a encobria um grande edifício enegrecido pelos anos e situado a pequena distância da cidade pata o ocidente. Tinham-me dito que eram os paços reais de Santos. Sabes que antes desse dia fatal em que abandonei sem remorsos nosso velho pai nunca vira o mar. Quando pela primeira vez, daquela mesma janela, contemplei essa imensa cópia de águas, apesar do insensato prazer que sentia de me achar então ao lado de Fernando, experimentei uma violenta impressão de terror e, não sei porquê, veio-me ao espírito a ideia de me ver mergulhada no imenso pego que brilhava trémulo, debatendo-me nas ondas e afundando-me, afundando-me sem que ninguém me socorresse. Foi tão enérgica esta impressão que recuei horrorizada, dando um grito agudo. Assustado a princípio, vendo-me trémula e demudada, Fernando não pôde conter o riso apenas lhe expliquei a causa do meu súbito terror. Posto que, depois desse dia, fosse gradualmente desaparecendo aquele susto infundado, nunca chegava à janela donde a primeira vez vira o mar sem sentir o receio invencível que gera em nós o aproximarmo-nos da beira de um precipício.
«Havia já bastante tempo que não lançara os olhos para o rio. No tumulto, porém, de paixões que essa carta cruel me acendera no seio, sentia uma opressão intolerável: abri maquinalmente a janela para respirar. Tinha ante mim o vulto das águas, que mal se enxergava à claridade ténue do crepúsculo fugitivo. A impressão que tal vista me produziu no espírito foi inteiramente nova. Representava-se-me a imagem de morte irremediável na solidão das ondas, como da primeira vez que as contemplara: o terror, porém, desaparecera. Atraía-me, ao contrário, para aí um sentimento de aprazível saudade. Até esse momento nem uma só lágrima me assomara aos olhos: pousavam-me todas condensadas, espessas, sobre o coração. Correram então com abundância, e pude, enfim, respirar.
«A noite vinha tempestuosa. Um negrume cerrado alevantava-se dalém dos montes de Almada e corria ao longo deles impelido por vento rijo e tépido, que murmurava pelas ameias dos eirados e pelos coruchéus dos palácios e fazia gemer o rolo do Tejo, batendo mais violento e encapelado lá em baixo, na praia da judiaria. Não se descortinava no céu uma estrela, e a chuva miúda e frequente começava a fustigar-me as faces. Pus-me a cismar e cismei muito tempo. Uma voz parecia dizer-me: "Ao mar! ao mar!" Era o demónio que me tentava? Assim o cri a princípio. Ajoelhei e rezei a Nossa Senhora e ao meu anjo-da-guarda. A mão de ferro da angústia bastaria para me matar: porque havia, pois, de tentar contra os meus dias? Foi a ideia que me veio depois de muito rezar. Ergui-me e tornei à janela. Olhei: era noite escura: já não via senão o alvejar ao longe das carneiradas que corriam pela superfície do rio. "Ao mar! ao mar!", repetiu-me a mesma voz íntima que ouvira. íntima? Não digo bem: juraria que me soava distintamente nos ouvidos. A terribilíssima recordação de que tudo quanto me rodeava pertencia ao homem que me abandonara; de que só à miséria e à desonra podia naquele momento chamar minhas; de que, sem aceitar um nome infame, não me era licito demorar-me naquela morada, nem sequer para estalar de dor; tudo isto, junto com a voz imperiosa que ouvia, excitava em mim tal delírio, um frenesi tão insensato, que não hesitei mais em obedecer a esse preceito infernal. As dificuldades que poderiam obstar a semelhante resolução nem sequer me passaram pelo espírito. Imaginei que, além dos paços de Santos, por entre essas vinhas que os rodeavam, estendendo-se para o ocidente, algum outeiro escarpado, algum promontório bojando sobre as águas me facilitaria um ponto sobranceiro às vagas donde pudesse precipitar-me. A margem de cá do Tejo devia ser como me parecia a de lá, áspera e debruçada sobre as ondas. Achava-me só: a escrava saíra. Cobri-me com um capuz, escondi a cabeça e o rosto com o capelo e obedeci ao impulso que me arrastava. Parti.
«A chuva começava a cair grossa e pesada. A minha boca, durante esse dia, não tocara em nenhum alimento, e contudo sentia-me robusta. Só as veias das fontes, batendo-me com força, e uma viva dor de cabeça me perturbavam. Segui o caminho que me pareceu dirigir-se para o poente da cidade. As rajadas do vento, que soprava rijo daquele lado, serviam-me de guia, através das ruas tenebrosas e confusas, que sucediam rapidamente umas às outras. Os raros vultos que encontrava sentia-os parar um momento; mas os meus passos eram tão ligeiros, e a escuridade tão profunda, que logo cessava o reparo, e seguiam avante. Brevemente me achei numa rua ladeada de arcarias: grandes edifícios como que passavam para trás fugindo: devia ser a Rua Nova, em que tanto ouvira falar. Atravessei um terreiro, encaminhei-me ao longo de uma corredoura ou passagem estreita e solitária e cheguei a uma das portas ocidentais da cidade. Estava aberta ainda. Apesar da cerração, divisava-se um largo pano da muralha pardacenta, sobre a qual duas torres da mesma cor se me representavam como dois espectros gigantes de pé em cima de extensa lousa. Estremeci de terror. Lembrei-me de que essa porta era a da vida para a morte e de que, talvez, pouco depois de a haver transposto, ela se fecharia eternamente após mim. A imagem de nosso pai, a tua, meu irmão, e até a da nossa pobre Brites pintaram-se-me na alma com tanta viveza, tão repassadas de saudade, que parei e, assentando-me num marco junto ao vão da porta, desatei a chorar.
«Foi, porém, um momento. Depois dessas imagens tão queridas, outra com um sorriso de escárnio as substituiu. Adivinhas qual fosse... A repugnância sucedeu ao terror. Senti que já não amava; que antes de me soltar da vida este coração morrera! Ao mesmo tempo, a voz que mais de uma vez ouvira pareceu-me que repetia as palavras fatais: "Ao mar! ao mar!" Diria que os lábios desse vulto que a imaginação febricitante me afigurava se haviam agitado para as proferir. Ergui-me então. Tinha os olhos enxutos, e com passos firmes atravessei o profundo portal.
«Além dele era uma estrada chã. Por entre algumas choupanas que demoravam da esquerda, via-se um reluzir vago, e ouvia-se estourar e murmurar, espraiando-se, o rolo das ondas. O vento abrandara, as nuvens rareavam, e a Lua passava a correr por cima delas diante de mim. À direita erguia-se um monte empinado. Era necessariamente o de Santa Catarina, cujos cimos, cobertos de verdura e coroados de algumas casarias, eu dantes avistava ao longe por cima dos adarves da muralha ocidental. Depois de observar rapidamente o que me ficava dos lados, ornei ante mim para me afirmar no caminho. Lá estavam a curta distância os paços de Santos, cujo vulto negro o luar nublado me deixava reconhecer, posto que mal distinto.
«Desde então em nada mais reparei senão nesse edifício tristonho que tomara por baliza. Em breve o transpus, descendo para estreito vale. Com desvairada alegria, vi que a estrada subia de novo, prolongando-se com o rio. Era como o previra. Pendurava-se acima da água em ribas despenhadas e fragosas. Ali ia achar, enfim, a noite verdadeira e eterna em que repousasse das angústias desse infernal dia.
«Mas a espécie de ebriedade frenética, de feroz contentamento que agitava a minha alma, durou bem pouco. A estrada que seguia quase à borda do precipício estava amparada por um muro que a ia acompanhando até se curvar para outro vale. Prossegui sem desanimar ainda, esperando achar alguma passagem para a ribanceira. Debalde: nenhuma havia. Pensei então em retroceder... Para onde e para quê? "Eia!", disse comigo. «Aqui ou mais adiante, que importa?" Continuei.
«Ou que o cansaço me houvesse quebrado as forças, ou que a humidade, que me traspassava os membros, me houvesse acalmado um pouco a febre em que ardia, eu caminhava menos rapidamente. Não tardei a passar uma ponte. Além dela, a um lado ficavam brenhas e arvoredos que murmuravam com o vento; ao outro, a Lua, descoberta um momento por entre as nuvens rotas, prateava o mar. Alonguei os olhos: diante de mim dilatava-se a margem pantanosa e solitária, que, estreitada pelos montes e semelhante a uma faixa mosqueada, se estendia a perder de vista. Parei outra vez. Começava a desanimar: o frio coava-me até a medula dos ossos. Corri à praia para meter-me às vagas, deixando que elas me arrastassem; mas aos primeiros passos que dei, penetrando na água, recuei horrorizada. Pelo rio revolto do temporal vinha a aproximar-se, a aproximar-se um rolo enorme, que ao tocar em terra se espraiou em lençóis de escuma. Era medonho ver vir assim pouco a pouco a morte para me dar a mão e pouco a pouco, retirando-se, arrastar-me ao abismo.
«Tua irmã, meu Vasco, que já desonrara uma vez o sangue generoso de nossos avós cedendo a uma paixão insensata, desonrou-o outra vez com a covardia. Não tive o valor de morrer!...
Um como rubor héctico passou pelas faces pálidas de Beatriz, que as cobriu com ambas as mãos, ficando assim por alguns instantes. Depois, afastando as madeixas que lhe haviam pendido sobre o rosto, prosseguiu:
– Tornei a meter-me ao caminho; mas já não tinha inteira consciência do que fazia, e nem, até, me recordava bem do motivo por que me achava ali. A dor violenta que sentira na cabeça desaparecera: deslumbravam-me, porém, umas fitas de fogo que frequentes vezes via passar ante os olhos. Estonteava-me um zumbido estridente, que impedia chegar-me aos ouvidos outro qualquer som, e a estrada afigurava-se-me uma cobra monstruosa coleando-me debaixo dos pés, que fugiam para trás sobre o dorso escorregadio do réptil. Estendi as mãos para me segurar. Dei um estremeção violento, e nada mais senti.
«O resto sabe-lo tu, meu irmão.
Beatriz calou-se: e após largo silêncio, o frade na mesma postura, de braços cruzados e com a cabeça pendida sobre o peito, parecia escutar ainda.
Depois, alçou subitamente a fronte, estendendo para o ar os punhos cerrados, blasfémia muda dita pela sua alma ao Céu. Reverberava-lhe outra vez o fulgor nos olhos, a cor da vida no gesto, e sem proferir palavra recomeçou o seu anterior ir e voltar de um para o outro lado do aposento. Havia naquele movimento o que quer que era de tigre encerrado em gaiola de ferro.
Deixemo-lo cismar e passear e, enquanto cisma e passeia, aproveitemos o tempo para irmos espairecer os olhos numa cena bem diversa.
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