O Monge de Cister: Tomo I V - O TRUÃO
Tal foliam, se attentaes,
Digo isto assi de mim,
Que em os dias festivaes
Cuidou não havia mais
Senam foliar sem fim;
E ficou-lhe o atabaque,
Os sestros e o pandeiro...
A. R. CHIADO, Letreir. Glosados.
No dia em que se passaram os sucessos que vamos narrando, havia mais de duas horas que Ale passeava à beira da água no desembarcadouro de Restelo, sem que outros foliões seus antigos amigos e camaradas, que correram a ele apenas o viram aparecer, pudessem movê-lo a tirar-se dali e a vir engolfar-se naquela mó de danças, cantares e folias, que redemoinhava bastante longe dele pela extensão do areal. Esperava por Fr. Lourenço. Ale era o mouro que falara com Fr. Julião, e a quem este prometera, por sua conta protecção, e por conta alheia caridade.
Apenas o truão viu desembarcar os dois frades correu para Fr. Lourenço:
– Obrigado, obrigado, padre cristão, que não desprezastes a petição do pobre mouro.
– Cristo chamou os judeus e os gentios. Deus não despreza ninguém. Mas nem tu, nem os teus ulemás e cacizes entendem estas cousas. Prouvera ao Senhor que as entendêsseis! Vamos: foste acaso tu que me buscaste ontem à tarde?
– Padre, sim!
– Disseste que uma cristã se queria confessar: onde é que ela está?
– Vinde vós comigo. Oh, como ficará contente!
E Ale caminhou adiante dos dois monges todo risonho e dizendo, como quem falava consigo só:
– Bom Jesus e bom padre! Bom Jesus e bom padre!
O caminho que os três seguiam era ao longo da margem. A um tiro de besta abriase um vale entre dois montes, cujos cimos se prolongavam para o norte. Chegando àquele sítio, Ale voltou à direita e tomou por uma trilha que acompanhava o sopé de uma das encostas. Os dois frades calados iam algum tanto afastados. Ouvia-se unicamente o som das passadas dos caminhantes, e a espaços um murmúrio confuso do ruído que se fazia em Restelo e que era trazido pelo sopro morno de leste. Depois de largo silêncio, Fr. Vasco disse em voz baixa para o mestre de Teologia:
Tenho estado a lembrar-me de que já vi este mouro; mas não atino em que lugar ou em que tempo.
– Grande maravilha – atalhou rindo Fr. Lourenço. – Milhares de mouros tereis vós visto na vossa vida, irmão Fr. Vasco, e o que vos sucede com este suceder-vos-á com infindos outros,
– É verdade; mas não sei que tristeza me infunde o vê-lo. Diria que este homem entrou de algum modo nas desventuras que padeci e nas mal sopitadas agonias do meu coração.
– É o sítio, só e triste, que vos traz ao pensamento essas melancolias do passado.
– O coração às vezes adivinha, reverendo mestre. Quem sabe se neste negócio anda alguma traição encoberta? Chamarem-vos de tão longe para exercer o mister de confessor de uma mulher moribunda.., um mouro por mensageiro e guia!... um sítio ermo por vivenda!... Temo alguma cilada: não por mim, que pouco importa ao mundo a minha vida, mas por vós, benfeitor dos miseráveis. Enganam-se todavia! – prosseguiu Fr. Vasco em voz alta. – Trazeis o vosso cutelo?
– Calai-vos, irmão, calai-vos! Que cutelo?! A minha defensão é Deus. Tenho inimigos; bem o sei; mas tenho-os por defender a justiça e a nossa ordem. Um ferro nas mãos de um sacerdote! Nunca o vereis nas minhas. O braço da Providência ampara os que nela confiam, e esse braço é mais forte que o do esforçado e guerreiro. O abuso que introduziu o demónio entre os clérigos e monges de tratarem armas para que tem servido? Para rixas e mortes entre homens que se chamam santos e irmãos. Perguntasteme se eu trazia um ferro: pergunto-vos também eu agora: trazeis vosso cutelo, monge de Cister?!
– Como todos costumam, reverendo nono... – respondeu Fr. Vasco, pondo os olhos no chão...
– Dai-mo.
Fr. Vasco afastou o escapulário, tirou da cinta um punhal e, com visível repugnância, entregou-o ao seu companheiro.
O mestre de Teologia pegou nele, arremessou-o com força, e o ferro buído foi cravar-se numa grande nogueira, onde ficou por algum tempo vibrando. O mancebo olhava para a árvore com o aspecto tristonho de quem se despede de um amigo antigo. Entretanto Fr. Lourenço Bacharel dizia em voz baixa, erguendo o braço esquerdo até a altura da fronte e movendo-o rapidamente para fora, como quem sacode um mosquito ou um pensamento importuno:
– Vaie retro, Satana! Deus fortitudo mea!
Esta conversação e o seu desfecho tinham retardado os dois frades. O mouro, não os sentindo atrás de si, parara e, voltando-se, presenciara aquela cena, sem que por causa da distância pudesse perceber o que fosse. Ficou espantado; mas não disse palavra e prosseguiu seu caminho.
Parou finalmente. De um e de outro lado da senda alargava-se o vale, formando uma caldeira entre os dois montes paralelos. Da esquerda, obra de uma oitava parte da pequena planície estava cercada de um valado, por cujo espigão se enredavam bastos silvados; um portelo grosseiro dava entrada para uma espécie de pátio, à direita do qual ficava uma humilde casinha, e da parte oposta um canavial basto, mas ainda curto, que separava o pátio da almuinha, e do vergel. Ao longo do canavial corria um regato que ia formar uma presa ou tanque cujas bordas relvosas eram como um tapete de verdura. A porta da casinha estava fechada, e uma grosseira tela de estopa servia de vidraça à janela que dava luz para o interior. Reinava sobre isto tudo um silêncio profundo, que só foi interrompido pelo ranger do portelo, quando o mouro o fez rodar sobre o prumo que lhe servia de quício, e pelo clac, clac das rãs que estavam assentadas gravemente na margem do pego, e que saltaram à água assustadas pelo súbito ruído do chiador portelo, que respondia ao clac, clac das tímidas fugitivas.
Enquanto o mouro corria o ferrolho da porta, os dois frades chegaram ao pé dele, e Ale, curvando-se respeitosamente, fez-lhes sinal que entrassem.
Era a morada do pobre jogral, como a de todos os mouros da sua condição, térrea, húmida, malsã. Sobre a lareira ardiam alguns toros de lenha, cujo calor não era suficiente para embeber as exalações aquosas que manavam das paredes verde-negras e do pavimento frio e imundo. A um canto viam-se uma bilha de água e uma prateleira com alguns vasos de barro vermelho; ao pé, em um prego, estava pendurado um adufe roto e coberto de pó e defronte uma arca velha, sobre a qual os dois frades se assentaram, enquanto o mouro abria a porta que dava para um aposento interior.
Este era alumiado frouxamente através da grosseira empanada da janela lateral. Fr, Vasco lançou os olhos para lá; mas a luz que entrava livremente pela porta e enchia a quadra em que estavam mal lhe deixou divisar aí dentro uma enxerga e um vulto deitado em cima dela, com o rosto virado para a parede.
– Menina! pobrezinha! Aqui está o bom do padre do teu Jesus.
Isto dizia o mouro em voz baixa, curvando-se e estendendo o pescoço, como que receoso de despertar quem quer que era.
– Dorme! – prosseguiu ele, voltando para fora pé ante pé, semelhante à mãe que deixa ainda ondulando o berço do filhinho, o qual adormeceu a custo de muito embalar...
Fr. Vasco fez um gesto de impaciência.
– Esperaremos – disse Fr. Lourenço. – Mas, ainda assim, explica-me tu, agareno, como esta mulher cristã vive aqui só contigo. Não sabes que te é isso defeso?
– Padre, padre – tornou o mouro, como assustado pelo tom em que Fr. Lourenço fizera a pergunta. – Eu topei essa desgraçadinha, por uma noite fria e chuvosa, deitada no meio do caminho que vai de Restelo para Lisboa: ergui-a e perguntei-lhe quem era: não me podia responder: tremia e estava gelada. A minha lei, padre cristão, obriga-me a socorrer o desventurado: obedeci à lei. Como pude, debaixo da chuva, por caminhos intransitáveis quase, conduzi-a aqui, e aqui, ao clarão daquela lareira, vi pelos seus trajos que era uma rapariga cristã. Pensei então que corria grande risco em a conservar em casa: mas também pensei no que reza o livro do profeta, e disse comigo: «Que importa no mundo a vida de um pobre truão, quando há que escolher entre essa vida e obedecer a Allah?» O calor da fogueira que acendera reanimou pouco a pouco a pobre mulher. Apenas pôde falar, pareceu-me ouvir-lhe: «Oh desgraçada, desgraçada!» E, pondo as mãos, dizia-me toda a tremer: «Não lhe digais nada, nada... deixai-me morrer!» Cortava o coração. A sua voz era tão suave e meiga! As lágrimas, que eu mal sustinha, embaciavam-me a vista, e mais bem as alimpava com a manga da aljuba.
«Pedi-lhe que comesse, pouco que fosse. Estava queda e de olhos baixos. Quando os alevantou e me viu, pôs-se a tremer. Tinha razão. Se eu era um mouro! Que havia de fazer para aquietá-la? Nem eu sabia. Apontei-lhe para aquela alcova, para o ferrolho que interiormente fechava a porta e para a minha pobre enxerga. "O Deus grande e o profeta", disse-lhe eu, "mandam que a choupana do mouro seja asilo sagrado da que aí se abrigou. Estás aqui segura". Titubeava ainda: queria talvez sair. Mas a noite ia cada vez mais fria: os trovões e os raios eram uns atrás de outros: a chuva era aos cântaros. Para onde havia de ir? Disse-mo depois: não tinha outro abrigo. Por fim resolveu-se: aferrolhou-se na alcova, e eu encostei-me ao pé do lar, onde ainda reluzia o brasido da fogueira.
«Estava contente comigo, bom padre; estava contente comigo! Rezei a quinta salá, a nossa oração da noite, com mais fervor que nunca. Allah e o profeta deviam ouvir-me no céu. Nós outros os mouros – prosseguiu Ale com um sorriso amargo – também temos consciência; também sabemos o preço das boas obras. Agora, padre cristão, a donzela de vossa lei vos dirá o que o mouro tem feito para a salvar. Ela dirá se o mouro merece ser açoutado ou morto, porque recolheu na sua morada uma das que adoram Jesus. Muitas noites ouvia-a soluçar sobre essa enxerga onde jaz: muitos dias quando voltava aqui, depois de ter ganhado para mim e para da um bocado de pão negro, achava-a debulhada em lágrimas; mas nem ela me dizia os seus pesares, nem eu lhos perguntava. Afligia-me vê-la chorar e padecer tanto e conhecia que lhe minguavam as forças de dia para dia. Mas que podia fazer um mouro, sem riqueza e sem se atrever a dizer nada a ninguém acerca da triste cristã? Cismei muito tempo nisso. Por fim veiome uma boa ideia. Tinha ouvido falar de vós, padre: sabia que éreis bom e que os cristãos vos veneravam: um escravo do vosso mosteiro mo dissera muitas vezes. Anteontem essa mesquinha parecia mais sossegada: comuniquei-lhe o meu intento: foi a primeira vez que lhe vi luzir no rosto um sinal de alegria. Não tinha ousado pedir-me tanto, receando o risco do que ela dizia ter sido o seu salvador. Fui procurar-vos, e o resto já o sabeis. Agora protegei-a a ela e tende dó do pobre Ale, que não tem outra culpa senão a de ter obedecido à lei do profeta.
– À de Cristo! à de Cristo! – exclamou vivamente Fr. Lourenço, erguendo-se e abraçando o mouro, que estava em pé diante dele como um criminoso. – Filho, tu não serás condenado no dia em que vier o Juiz. Amaste Deus e o teu próximo: foste mais cristão que a maior parte dos que se gloriam de tal nome. Caridade e só caridade é a crença de Jesus. Ele te alumiará; porque deste testemunho dele, não por palavras, mas por obra. Enquanto cristãos deixavam perecer à míngua uma desgraçada, tu a salvavas. Sabe, porém, que neste momento eles renegavam da Cruz, e tu te abraçavas com ela!
Nem por isso Ale entendeu lá muito bem o que queria dizer o bom do religioso; mas entendeu perfeitamente que o abraçá-lo Fr. Lourenço era sinal de que o seu proceder merecera a aprovação de um tão afamado ulema cristão. Sorriu-se, e involuntariamente pegou na mão do monge e beijou-a. Parece-me que eu faria o mesmo a um caciz de Mafamede, se esse caciz pensasse e fosse como o mestre de Teologia.
Neste momento ouviu-se um suspiro que partia da alcova.
– Vasco – prosseguiu Fr. Lourenço, voltando-se para o seu companheiro e para Ale –, ide-vos ao horto. É necessário que eu ouça a confissão desta mulher.
– Depois encaminhou-se para a porta da alcova e disse: – Irmã! eu sou aquele que vem em nome do Senhor.
O vulto não respondeu nada e ergueu-se. O soluçar da mesquinha era o de um choro perdido. Atirou-se de joelhos aos pés do monge e, depois de afastar os cabelos que lhe cobriam o rosto, só pôde dizer:
– Misericórdia, meu Deus!
Os dois tinham obedecido. Fr. Lourenço estava a sós com a desconhecida.
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