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O Monge de Cister

Capítulos 15

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O Monge de Cister: Tomo I II- TUDO DESVENTURA

Tristeza, dor e cuydado,
leixae-me: – que mais quereis?
porventura nam sabeis
que sou já desesperado?
CANC. DE RESENDE, Trov. de L. Henriques.

 

– Quando tornei a mim-prosseguiu o moço cisterciense – estava em cima da cama, em um aposento dos meus paços. A primeira cousa que me lembrou foi chamar por meu pai e por minha irmã. Depois recordei-me de que já nem pai nem irmã tinha; calei-me. Ao lado do meu leito estava um padre: era o velho abade que me baptizara e me ensinara a ler. Ele percebeu que tornara a mim: pôs-se em pé; eu estendi para ele as mãos: deu-me uma das suas; apertei-a entre as minhas e levei-a a boca e beijei-a: era descarnada e enrugada como devia ser a de meu pobre pai. Nem ele me dizia nada; nem eu a ele. Eu por mim não tinha nada que dizer, porque o que me estava na alma não era causa que com palavras se dissesse, nem a que com palavras se respondesse. Depois de largo tempo, ouviram os meus ouvidos a minha boca perguntar:

 

«– Que horas são?

 

«– Quarto de prima – respondeu o abade.

 

Com efeito, o sol começava a tingir-me a cama de todas as cores das vidraças de uma fresta que me ficava fronteira. E eu olhava para a fresta com os olhos fitos; parecia tranquilo; porém cá dentro ia um tumulto medonho. A imagem de meu pai defunto, de minha irmã desonrada queimava-me o cérebro. Vingança! Esta palavra sentia-a soar, palpava-a, via-a escrita, afigurava-se-me convertida em efeito. Um cavaleiro estava por terra, o seu peito arquejava debaixo da minha joelheira de ferro, e um punhal me reluzia na mão erguido sobre a garganta do roubador de minha irmã. Era um prazer horroroso!... Desde então para cá sempre cri que podia haver um momento de deleite no meio dos tratos do inferno.

 

«Até aí nem o nome, nem a imagem de Leonor me tinha passado pelo espírito. Foi depois disso que este nome e esta imagem me apareceram como um pensamento do Céu. Rebentaram-me então dos olhos as lágrimas: as minhas mãos apertaram com ânsia as mãos do abade, e o pulso bateu-me com vigor febril. Senti que estava em um leito, em um aposento, ante a luz de Deus, entre os homens, na vida.

 

«Disse algumas palavras ao abade. Este santo homem me contou então que eu passara a noite inteira em espantoso delírio e que ele se encarregara de me vigiar desde a meia-noite. Ponderou-me que era necessário tomar algum alimento: recusei: instou. Pedi-lhe então que me chamasse Brites. Primeiro que tudo queria falar com ela.

 

«Brites era uma velha dona que fora minha ama e que ficara depois servindo de cuvilheira de minha mãe. Quando esta faleceu era eu mui moço, e Beatriz uma criança. Meu pai encarregou-a do governo doméstico, e nós habituámo-nos a tê-la em conta de segunda mãe: também ela nos amava como filhos. Apesar de perturbado, notei com dissabor não a ver ao pé de mim.

 

«– Mas Brites... – disse o abade titubeando, e calou-se.

 

«– Mas Brites – repliquei – devia estar junto do pobre Vasco, que, segundo dizia, tanto amava. Também ela foge de mim?

 

«– Não, senhor. Eu fui que não consenti que ela aqui estivesse. De que podia servir-vos a pobre dona, senão de acrescentar-vos agastamentos ao coração?

 

Bem pelo contrário! – atalhei eu. – É a única pessoa que está aqui da minha... – ia a dizer família... lembrei-me ainda outra vez de que não a tinha.– Enfim – prossegui em tom de quem quer ser obedecido – que Brites venha ca.

 

«O abade cravou em mim os olhos: parecia irresoluto e aflito: um gesto de impaciência que me viu no rosto o resolveu. Saiu vagarosamente.

 

«Daí a pouco, pareceu-me ouvir no aposento imediato a voz de Brites, que cantava:

 

Boa festa, santa festa,
Em que se canta latim:
De festa vestida, às bodas,
As bodas cantando vim.

 

«Arrepiaram-se-me os cabelos. Um psiu! prolongado cortou a cantiga.

 

«Brites entrou: o abade trazia-a agarrada pelo braço. Custou-me a conhecer-lhe as feições: estava inteiramente demudada: tinha os olhos esgazeados, as faces pálidas e encovadas e por cima de tudo isto um como véu de riso convulso, O abade olhava para ela com aspecto severo.

 

«– Meu criado gritou Brites apenas me viu –, mandai embora este mau homem. Tem cara de castelhano. Hoje que é o dia do vosso casamento todos devem ter cara de riso. O senhor Vasqueanes – continuou a desgraçada, chegando-se ao pé do leito e falando em voz baixa, como quem me dizia um segredo – está lá fora deitado em uma cama preta. E sabeis o mais gracioso? Muitos padres estão ao redor da cama a falar-lhe em latim; mas bem faz ele que finge dormir e não lhes responde nada. Creio que espera por vós para ir à igreja...

 

«O abade interrompeu-a:

 

«– Está varrida – disse, voltando-se para mim. Depois que a senhora D. Beatriz fugiu de casa, começou a enlouquecer. Com a morte de vosso pai perdeu de todo o siso. Quiseste que ela viesse: pensei que se conteria diante de vós; mas vejo que os meus receios eram fundados. Ide-vos embora, Brites!

 

«– Não acudi eu, que sem pestanejar olhava para aquele doloroso espectáculo. – Não! Vem cá, Brites: abraça-me: fala-me de meu pai.., de meu pai só... e dize o que quiseres. Não sei o que em mim se passava. A dor começava a causar-me uma espécie de prazer.

 

«Brites deitou-me os braços ao redor do pescoço e deu-me um beijo na testa.

 

«– Vamos, meu criado – disse depois – ; olhai que é tarde e D. Leonor estará esperando. Vós já não sois Vasco da Silva, sois Lopo Mendes. Já não sois mancebo florido; mas homem grave e mui rico. Não é assim? É: oh que é! Parvos! Supunham que D. Leonor era donzela que casasse com outro: os pobrezinhos não sabem que mudaste de pessoa! Vamos, erguei-vos daí. Acabando de dizer isto deu uma gargalhada.

 

«Eu tinha coado cada uma das suas palavras pelo coração. Ergui-me de um pulo: em pé no meio do aposento, o meu aspecto devia ser infernal.

 

«– Velha maldita gritei furioso –, que infâmias estás aí dizendo? Que casamento de Leonor? Que Lopo? Fala ou te faço calar para sempre.

 

«Procurava o meu punhal na cinta; mas já não estava armado.

 

«– Não sabíeis?! Oh que não o sabíeis!... Meu Deus! Meu Deus! – Isto dizia o abade, que em um relance se me havia arrojado aos pés e soluçando me abraçava pelos joelhos.

 

«Brites arredara-se, cruzara os braços e, olhando para mim com ar de compaixão, repetia muitas vezes:

 

«– Coitadinho! enlouqueceu! «Talvez falava verdade, «Todavia, apesar da espécie de frenesi em que me lançaram as palavras de Brites, a postura e os soluços do venerável sacerdote chegaram-me ao vivo. Procurei vencer a minha desesperação: ergui-o e disse-lhe com aparente tranquilidade:

 

«– Não! não o sabia. Contai-me tudo.

 

«O velho sacerdote alevantou os olhos para os meus e viu neles cousa que o fez hesitar.

 

«– Contai-me tudo – repeti eu.

 

«Da primeira vez o som da minha voz era o da voz de um homem; da segunda, a meus próprios ouvidos pareceu que assim devia ser a de um demónio.

 

«Ao abade pareceu, por certo, o mesmo. Não hesitou mais. Eis aqui o que ele me disse. Ficou-me bem estampado na memória.

 

«– Meses havia já que Mem Viegas deixara de frequentar a casa do vosso pai. Aquela inteira amizade que por tantos anos os unira começou a esfriar grandemente. Todos os dias, segundo o antigo costume, vinha eu passar o serão com o senhor Vasqueanes, que com Deus é; todos os dias parafusávamos ambos sobre o motivo desta novidade e não podíamos atinar com ele. Salvo se era a necessidade de fazer companhia a um cavaleiro de Lisboa, homem já de idade grave, mas de aprazível presença, que viera ser seu hóspede. Este motivo, porém, não bastava para desculpar o pai de D. Leonor. O casamento de sua filha convosco, ajustado entre ele e vosso pai, devia ainda tornar mais robusta a amizade inalterável de tantos anos. Quando ao anoitecer, assentados ao redor do leito do senhor Vasqueanes, que por sua avançada idade se recolhia ao pôr do Sol, eu, vossa.. – digo a senhora D. Beatriz e o infame D. Vivaldo conversávamos acerca deste sucesso, buscávamos a causa de tal mudança; mas, depois de muito cismar e adivinhar, concluíamos sempre que era impossível achar o motivo de semelhante proceder.

 

«"Um domingo pela manhã, tinha eu acabado de dizer missa e estava na sacristia desrevestindo-me, quando o sacristão veio avisar-me de que um pajem de Mem Viegas estava aí e me buscava. Mandei-o entrar. Disse-me que seu senhor precisava de falar-me e que ele trazia uma hacaneia para eu cavalgar até o paço. Respondi-lhe que estava prestes. Partimos. Chegando à ponte levadiça, notei que pajens e escudeiros estavam vestidos ricamente das cores de Lopo Mendes, o hóspede de Mem Viegas. Fez-me isso estranheza; porque era sinal de noivado. Entrei. O fidalgo veio receber-me à sala de armas, fez-me assentar e disse-me:

 

«"– Mandei-vos chamar, reverendo abade, para que lanceis a bênção nupcial na capela destes paços a dois noivos que lá estão. Hoje passareis o dia connosco.

 

«"– Poderei já saber, meu ilustre senhor, quem são os noivos?

 

«"– Porque não?! – tornou Mem Viegas, sorrindo. – O noivo sabereis já quem é pelas cores de que os meus estão vestidos; a noiva, ninguém aqui o pode ser de tão nobre, rico e esforçado cavaleiro, senão a minha Leonor.

 

«"Estremeci. Havia poucos dias que tinha falado com o senhor Vasqueanes do vosso casamento com D. Leonor. Levantei-me e, em tom severo, disse ao velho cavaleiro:

 

«"– Quereis porventura gracejar comigo, senhor Mem Viegas? Vossa filha deve casar com Vasco da Silva, logo que ele volte da hoste de Nun'Álvares. A palavra de vossa mercê...

 

«"– Deve?! interrompeu Mem Viegas, dando uma risada. – Creio que sou nobre e livre, e que minha filha é minha filha. A palavra de Mem Viegas, dizeis vós? Se a minha palavra estivesse dada, não a quebrara eu, nem que fora ao próprio Satanás. Mas não a dei a ninguém. Verdade é que Vasqueanes me falou nisso, e que não achei estranha a proposta: mas Leonor prefere Lopo Mendes; mudou de amores: também eu na mocidade mudei mais de uma vez. Além disso, o meu futuro genro é mais rico e mais nobre, e o que eu prefiro a tudo é a felicidade de Leonor.

 

«"Embora, senhor cavaleiro, embora! – tornei eu. – Dai-me licença para duvidar de que vossa filha troque de bom grado pelo segundo o seu primeiro noivo. Sei que se amavam muito; porque vi nascer e crescer o seu amor. Não; não é possível semelhante mudança.

 

«"– Vê-lo-eis já – interrompeu Mem Viegas.– Ela está na capela: examinai bem o seu gesto e as suas palavras e julgareis por vossos próprios olhos se aí há outro constrangimento que não seja o de pudor de donzela que vai trocar a sua coroa virginal pelo grave título de dona.

 

«"– Se assim é repliquei –, não posso exercitar meu ministério nestes paços. Em vez de abençoar, eu amaldiçoaria: amaldiçoá-la-ia a ela; porque assassina sem piedade um valente mancebo, o meu desgraçado pupilo, o filho do honrado e bom cavaleiro Vasqueanes.

 

«"Dizendo estas palavras, encaminhei-me para a porta da sala. Não queria demorar-me ali mais.

 

«"– Alto lá, dom abade gritou Mem Viegas, aferrando-me por um braço. – Lembrai-vos de que estais ante um nobre cavaleiro da Estremadura! Ouvi, sem irritarme, repreensões em que ultrapassastes a liberdade que vos dá o vosso ministério; mas à fé que não vos ouvirei mais nenhuma. Não quereis abençoar minha filha? Paciência! O meu capelão o fará. Também era honra que vós, filho e neto de mesteirais e vilãos, não merecíeis. Todavia não saireis daqui para irdes contar o que vistes e ouvistes a Vasqueanes; porque não quero que esse velho tonto faça alguma loucura. Amanhã pela manhã partiremos para a Corte, e vós podereis relatar ao vosso amigo o que se passou. Servireis ao menos de testemunha – prosseguiu com um sorriso de escárnio. – Não é assim! Pajens, o nosso abade padece de gota: talvez lhe custe caminhar até a capela. Se ele não puder ir só, ajudai-o!

 

«"Ergueu-se, fez-me uma cortesia e partiu. Conheci que se empregaria a força se resistisse. Dirigi-me, portanto, à capela. Dir-vos-ei o que aí se passou? Adivinhai-lo. Mem Viegas dissera a verdade. Leonor entregava de bom grado alma e corpo a Lopo Mendes! Ele era mais rico e mais ilustre que vós!

 

«Neste ponto da sua narrativa o abade parou. Eu olhava para ele imóvel. O velho sacerdote prosseguiu:

 

«– Andei todo o dia livremente pelos paços; mas notei que os besteiros e homens de armas de Mem Viegas me vigiavam os passos. Ao cair das trevas guiaram-me para o aposento onde devia passar a noite: era o alto de uma das torres que olham para o poente. Deixaram-me só, e senti daí a pouco correr os grossos ferrolhos da porta que dava para as quadras do palácio. Rezei: deitei-me; mas não pude dormir. Vinha a manhã rompendo, quando percebi ruído de cavalos no pátio interior do paço. Passado um breve instante abriram a porta da minha prisão. Entrou um pajem e disse-me que podia sair quando bem me aprouvesse.

 

«"Desci à sala de armas: estava deserta. Saí então: atravessei a ponte levadiça, onde não vi mais que dois besteiros, alguns servos mouros, e o mordomo que passeava pela borda da cárcova. Ao longe, pela estrada, enxerguei uma formosa cavalgada de cavaleiros e damas em ginetes e palafréns. Entendi o que era. Sem dizer palavra, sem olhar para trás, endireitei para a abadia.

 

«"Joane, o antigo sacristão, que ainda a esse tempo era vivo, correu a mim de súbito apenas me avistou. Tinha ido bater à porta da residência e, vendo que eu não abria, estava inquieto; porém quando me conheceu ao longe ficou espantado. Contei-lhe tudo: não me queria acreditar. Incumbi-lhe várias cousas relativas à igreja e parti imediatamente para os paços do senhor vosso pai que em glória está.

 

«"Achei as portas abertas. Peões e besteiros de cavalo corriam para um e outro lado. Tudo mostrava que aí havia já notícia do que sucedera. E eu que compunha medidas palavras para minorar a impressão dolorosa que tão extraordinário acontecimento deve produzir em Vasqueanes! eis o que eu dizia falando comigo mesmo.

 

«"Entrei: ninguém reparou em mim: todos andavam como pasmados. Sem falar com pessoa alguma, cheguei à câmara de vosso pai. Parece-me que o estou vendo! Assentado em um escabelo, com as faces entre os punhos, os olhos fitos no ladrilho do aposento e o respirar alto e rápido. Aquela grande alma vergava debaixo do peso da aflição. Cheguei-me a ele sem que me sentisse: bati-lhe de manso no ombro: olhou para mim e sorriu-se. Este sorriso traspassou-me o coração. Depois, o seu gesto recobrou as rugas de uma dor funda. Ele não me dizia nada. Fui eu o primeiro que falei.

 

«" Senhor Vasqueanes, o homem põe, e Deus dispõe. Seja feita a sua vontade.

 

«"– E a sua vontade será que se cometam crimes infames e que um pobre velho seja desonrado quando tem já os pés metidos dentro do ataúde?

 

«" – A sua vontade é que o bom pague com amarguras do mundo as culpas de que ninguém é exempto, e que o mau folgue e ria cá em cima, porque a sua conta tem de ser saldada no inferno.

 

«"– Oh! mas a desonra!

 

«"– A desonra é para quem comete feitos vis. O que deles padece esse não é desonrado.

 

«"– Isso dizeis vós outros atalhou com veemência vosso pai –, os que não herdastes um nome antigo, que se fiou de vós como depósito para o traspassardes sem nódoa aos vossos herdeiros. Vós não tendes herdeiros! Meu Vasco, meu Vasco! onde estás, cavaleiro, filho e neto de cavaleiros, onde estás tu?! Olha que o meu montante enferrujado já não pode sair da bainha; olha que as pernas trôpegas de um velho já não podem apertar as ilhargas de um ginete! Vem! Olha que cuspiram no brasão de teus avós. Lava esta nódoa com sangue.

 

«Quando o abade repetiu estas palavras de meu pai, a sua voz se me converteu na dele; e eu rugi por entre os dentes cerrados: "Meu pai, serás satisfeito!" Um mar de sangue parecia correr diante de mim.

 

«"Sempre eu pensara – prosseguiu o abade – que a traição de Mem Viegas faria vivo abalo no animo de vosso pai; mas tanto, custava-me a crê-lo. O meu ministério era consolá-lo, e para a consolação recorri à fonte de todas elas: lembrei-lhe o Justo, o filho de Deus coberto de afrontas, perdoando na cruz aos seus perseguidores; lembrei-lhe que mais de uma vez, por obra e por palavra, o Crucificado ensinara o perdão das injúrias.

 

«" – Mas ele era Deus! Mas ele não tinha uma filha que muito amasse; que fosse como uma flor de inocência, um anjo de amor, e que se convertesse.., numa barregã refece e torpe. Um Judas houve entre os seus, como o que entrou nesta casa; mas esse onde está? No inferno. E este? Folga e ri de mim velho. Ah que este velho tem um filho! Vingança, Vasco! Vingança!

 

«"Eu olhava para vosso pai: não sabia se ele delirava, se nestas palavras havia algum mistério ininteligível para mim. Um pajem que entrou nesse instante me fez ver que vosso pai não delirava.

 

«"O pajem estava no meio da casa como um criminoso, os olhos pregados no chão e os braços pendentes.

 

«"– Então? – disse o senhor Vasqueanes com voz de mortal angústia.

 

«"– Todos os besteiros e homens de armas – respondeu o pajem acabam de chegar. Correram quatro léguas por diferentes caminhos. Não encontraram a senhora D. Beatriz, nem D. Vivaldo.

 

«"– Vasco! – foi o último grito de vosso pai: e caiu desfalecido. Então percebi tudo. Confesso que também nesse instante me passou pelo espírito um pensamento ímpio!

 

«"Poucas horas antes de eu sair da prisão em que me retivera Mem Viegas, D. Beatriz tinha fugido com o miserável D. Vivaldo. Este homem, indigno do nome de cavaleiro, passando por aqui, falsa ou verdadeiramente enfermo, pedira e recebera gasalhado de vosso pai. Dentro de poucos dias percebi que os olhos de D. Beatriz se encontravam frequentes vezes com os dele. Julguei que, devendo partir brevemente, se alguma afeição ia nascendo entre os dois, se desfaria com o apartamento. Entretanto D. Vivaldo, com seus modos cortesãos e de primor, cativava cada dia mais o animo de vosso pai. À noite lia-nos o Amadis do nobre Lobeira, que o senhor Vasqueanes muito gostava de ouvir e de que tinha um traslado dado pelo próprio autor. Quase que vosso pai não podia estar uma hora sem D. Vivaldo. Encostado ao seu braço, passeava tardes inteiras com de, ora na mata de carvalhos, ora no horto contíguo. D. Beatriz acompanhava-o, e este amor, que me parecia em começo, já estava convertido em incêndio violento. Minto: esse homem não era senão um sedutor infame! Se tivesse pedido D. Beatriz a vosso pai, ele lha houvera dado por mulher. Certo que o amava muito! Pobre que fosse ou de menos puro sangue. Era uma cegueira do honrado fidalgo; e aquele miserável devia ser o seu assassino!

 

«"Desde este dia, vosso pai não disse mais palavra, nem quis mais comer. Às vezes viam-se-lhe borbulhar nos olhos as lágrimas; mas enxugavam-se-lhe logo. Durou assim alguns dias. Uma febre violenta o sustentava. Este fatal alimento faltou-lhe por fim, e expirou. O nome único por que chamou, pouco antes de morrer, foi o de seu filho.

 

«Aqui o abade calou-se. Estava em pé diante de mim, e eu olhava para ele fito: Brites, que tinha escutado tudo, imóvel como eu, me tirou daquele torpor, saindo do aposento e cantando:

 

Boa festa, santa festa,
Em que se canta latim:
De festa vestida, às bodas,
As bodas cantando vim.

 

«Já, porém, este medonho contraste de uma voz de alegria no meio do ambiente de ferro que me cercava não me fazia abalo. A dor passara o termo até onde lhe é dado ir esmagando o coração humano: o meu era ermo, nu, petrificado. Mas aí estava gravada pela voz de meu pai uma palavra que não se podia apagar – vingança!

 

«"– Que me dêem algum alimento. No pátio um ginete enfreado e selado, A minha armadura e a minha espada bem limpas na sala de armas! Um pajem para me acompanhar.

 

«"– Senhor Deus, Jesu-Cristo! exclamou o abade, com um gesto de terror, que, não sei porquê, nele tinham causado estas palavras.

 

«"– Que me dêem algum alimento. No pátio um ginete enfreado e selado. A minha armadura e a minha espada bem limpas na sala de armas. Um pajem para me acompanhar!

 

«Os meus pensamentos eram imutáveis como de bronze; as minhas palavras como um dobre por finado, inegáveis, indestrutíveis.

 

«Creio que comi: senti renovarem-se-me as forças. Creio que vesti a armadura: ouvi o tinir do fraldão de malha sobre os coxotes e o jogar destes e das grevas debaixo das joelheiras. Creio que cingi a espada: o coração percebeu que o instrumento da vingança estava encostado ao peito. Creio que cavalguei o meu ginete: conheci que ele escarvava a terra diante da planície que se alargava em frente dos paços, já meus, como em dia de peleja no campo da lide.

 

«Também um pajem, cavalgando uma hacaneia, estava ao pé de mim: trazia-me a lança e, às costas, o meu escudo metido em uma funda. Como se outras armas houvesse aí mais que a espada ou o punhal para quem quer vingar-se; outro escudo mais que uma vontade, um pensamento perspicaz, tranquilo, único, incapaz de errar o alvo, semelhante a uma tenção danada de Belzebu!

 

«"Sabes onde são os paços do cavaleiro que esteve aqui? – perguntei eu ao pajem.

 

«"– Qual senhor!

 

«– D. Vivaldo, cão maldito!

 

«"Não, senhor. Mas ouvi que seguia a Corte.

 

«"Para Lisboa!

 

«Partimos. Caminhávamos enquanto os cavalos se podiam menear e ficávamos onde nos colhia a noite. Aproximámo-nos certo dia de uma povoação: era domingo: o sino tocava à missa: o povo apinhava-se à porta da igreja. Cheguei aí e passei. Não me importou o dever de cristão e não senti remorsos. Percebi então como um pensamento pode fazer um réprobo. As mãos estavam ainda puras: a alma já era negra.

 

«Entrei em Lisboa. Ao transpor a Porta da Cruz, experimentei o mesmo gozo que sentira ao descer o outeiro que jaz à entrada da minha terra natal: lá, pai, irmã, amante; aqui todas as minhas vítimas! Prazer de homem aí: prazer de demónio cá. Mas que importava? A intensidade era a mesma.

 

«A minha boa espada tinha de ir bater sobre uma cabeça criminosa, como maldição paterna lançada do leito da morte; como os pelouros desses trons ruidosos com que os Castelhanos rareavam nossas alas em Aljubarrota, sem haver arnês que lhes resistisse, elmo que, ao perpassar deles, não voasse em rachas com o crânio de seu dono, Qual devia ser a primeira? Hesitei. Lembrei-me da palavra que me legara meu pai: procurei o sedutor de Beatriz. Debalde. Ninguém conhecia D. Vivaldo. Entre os cavaleiros de el-rei nenhum havia tal nome. A febre da desesperação começava a consumir-me. Insuportável era para mim e para os outros a minha melancolia.

 

«Certa manhã, corria eu ao acaso ruas e terreiros de Lisboa, sem saber aonde ir ou a quem perguntar por esse nome vão, por essa sombra fugitiva que o meu sonho de vingança parecia trazer-me perto dos olhos e que a realidade me punha cada dia mais fora do alcance. Saindo da pousada, no extremo do Bairro dos Escolares, passei pelos Paços dos Infantes e cheguei ao terreiro da Sé. Ainda aí estava o engenho com que os populares tinham, em tempo de D. Fernando, despedaçado um traidor. Negro, meio podre, coberto de limos, tinha-o esquecido o povo! O monumento santo, o monumento da vingança não importava a ninguém! Apertei contra o coração o punho da espada. Ela não havia de esquecer-me nunca: só me tardava o dia em que pudesse pendurá-la no lugar mais alto da sala de honra dos meus paços, entre as armas ferrugentas de Vasqueanes, e depois ir ajuntar mais um cadáver no carneiro de meus avos.

 

«Com os braços cruzados e os olhos fitos no engenho arruinado, deixava-me ir ao som dos meus desvarios, quando vozes confusas vieram despertar-me. Olhei: o povo estava apinhado junto à torre da Sé que deita para a banda do aguião. Encaminhei-me para lá, sem saber porquê: arrastava-me uma espécie de instinto.

 

«Quando me aproximei logo vi o que era. Um truão mouro divertia o povo cantando arremedilhos, fazendo momos e visagens e saltando como alienado ao som de um adufe. Daí a poucos instantes um estrupido de cavalos soou do lado dos paços d'ElRei: o povo afastou-se, e dois cavaleiros, acompanhados de seus pajens, chegaram perto da torre junto da qual o bom do truão trabalhava por divertir a gentalha. Um deles era homem de idade madura, mas de aspecto aprazível; o outro mancebo e gentil-homem. Embebido em seus momos, o jovial folião continuou a saltar, tocando o adufe, com pantomimas lúbricas e cantigas obscenas; mas os dois cavaleiros, vendo que o autor do drama popular era um mouro, bradaram a uma voz: "Arreda-te, cão", e picando os acicates, senhores e pajens saltaram por cima do pobre mouro, que rolou pelo chão, dando agudos gemidos.

 

«O truão alevantou-se: olhou de roda espantado por alguns momentos e depois, cravando os olhos no céu, com um aspecto em que se misturavam sinais de cólera e de angústia, exclamou:

 

A maldição do profeta caia sobre vós, infiéis! «Ouvindo isto, o povo, em vez de se compadecer dele, começou a dizer-lhe injúrias e a atirar-lhe pedradas e lixo, dando grandes risadas.

 

«– Perro, porque não fugiste? – gritavam uns.

 

«– Arriba, e dança no monturo! bradavam-lhe outros.

 

«Um ano antes teria rido, como os mais, da desventura daquele mesquinho; mas tudo em mim estava mudado. Acreditareis, virtuoso Fr. Lourenço, que eu, cavaleiro de Cristo, tive dó de um mouro e amaldiçoei os dois nobres?

 

«– Vis sandeus – disse em voz baixa –, deixam passar os poderosos que oprimem, e escarnecem do agravado, porque é um pobre mouro! – Porventura esta reflexão nascia de que eu também era opresso. Também cavaleiros me haviam calcado como ao pobre maninelo.

 

«A minha reflexão foi ouvida por um velho que estava ao pé de mim. Mediu-me com a vista e, sorrindo-se, disse-me:

 

«– À fé, senhor, que tenho setenta anos, e é a primeira vez que ouço um cavaleiro doer-se de um vilão. Dos melhores são esses que vedes e, apesar de tudo, aí tendes o que fizeram ao triste jogral.

 

«– Conhecei-los? – perguntei eu.

 

«– E quem não conhece– tornou o velho– o mui nobre e esforçado Lopo Mendes e Fernando Afonso, o camareiro de el-rei?

 

«O nome de Lopo Mendes vibrou nos meus ouvidos como um trovão que houvesse estourado subitamente. Fiquei calado por algum tempo: uma tempestade de paixões tumultuosas e encontradas me dilaceravam o coração. D. Vivaldo ofendera a honra, Lopo Mendes o amor. As minhas diligências para encontrar D. Vivaldo tinham, porém, sido baldadas, e eu, que só vivia para sangue, coava dias após dias inúteis no mundo. O sedutor de Beatriz tinha o primeiro lugar: era a vítima de meu pai e a minha; mas o marido de Leonor passara diante de mim, senhoril, orgulhoso, feliz no seu amor detestável; interpunha-se entre o tigre e a preia. Deus tinha contado os seus dias. Devia morrer mais cedo do que eu próprio imaginara.

 

«Estes pensamentos vieram-me como um relâmpago; mas a resolução que geraram foi imutável. Voltei-me para o velho e perguntei-lhe com aparente tranquilidade:

 

«– E onde pousa ora Lopo Mendes?

 

«– Nas casas de Álvaro Pires, junto ao muro que desce da Trindade para Valverde, perto da torre de Álvaro Pais.

 

«Felizmente tinham-me ensinado a escrever. Parti. Nesse dia, ao pôr do Sol, Lopo Mendes recebia um papel, fechado com uma cinta preta, no qual havia estas palavras:

 

«"Um cavaleiro que te aborrece com as veras da alma te requesta e repta para um duelo a todo o trance. Amanhã no campo da lide, a hora de prima, com cota e braçais, estoque e misericórdia. Na primeira devesa, além do pinhal da esquerda, o acharás. Vil e refece, mais que sua infame mulher, é Lopo Mendes, se aí não estiver a hora de prima. Não leva firma: daqui a poucas horas me hás-de conhecer."

 

«O pajem que levara esta carta recebeu-a outra vez aberta e aberta ma entregou. Trazia no alto escrito:

 

«"Quem quer que sejas, vilão, põe aí teu nome, para que te faça açoutar como a um mouro perro e fugidiço. – Lopo Mendes."

 

Ri-me. 

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