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O Monge de Cister

Capítulos 15

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O Monge de Cister: Tomo I VII - O ABADE DE ALCOBAÇA

A soberba he cousa propria dos demonios e das molheres, a luxuria das animalias, e a avaresa dos mercadores, e destes todos se faz hüa cousa assignalada e espatosa que he ho maao clerigo.
FR. BERN. DE ALCOB., Vita Christi, p. 1, c. 7.

 

Se o leitor quiser partir de Restelo connosco adiante dos dois cistercienses e acompanhar-nos até a portaria do Colégio de S. Paulo, aonde precisamos de chegar antes deles, dar-lhe-emos conhecimento com um personagem de quem já falámos, mas que ainda não apresentámos em cena. Esse personagem, que tão grande parte teve nos sucessos contidos nesta verídica história, e que não menos importante papel político representou nas guerras e revoltas por que passou Portugal nos fins do século XIV, é o célebre abade de Alcobaça D. João de Ornelas ou Dornelas, um dos caracteres mais notáveis daquela época.

 

Fora Fr. João de Ornelas, quando simples monge de Alcobaça, esmoler de el-rei D. Fernando e, protegido por este monarca, subira à dignidade abacial por morte de D. Martinho seu predecessor. Pouco depois faleceu D. Fernando, deixando o reino pobre e dividido em facções: uns seguiam o bando de el-rei de Castela D. João I, como representante de sua mulher D. Beatriz, filha de D. Fernando, que, antes de morrer, a declarara herdeira da Coroa, ficando regente do reino a rainha D. Leonor; outros entendiam que a um dos infantes filhos de D. Pedro I e de D. Inês de Castro, que então andavam em Castela, competia a herança do reino; outros, enfim, inclinavam-se ao Mestre de Avis, irmão bastardo do rei falecido e príncipe geralmente amado por suas muitas bondades e cavalarias. A morte do conde Andeiro, perpetrada pelo Mestre dentro dos Paços dos Infantes, onde D. Leonor habitava, foi sinal de uma revolução popular, que de Lisboa se derramou por todo o reino com espantosa rapidez. Os nobres e senhores com seus clientes encostaram-se, pela maior parte, à parcialidade de Castela, alguns à do Mestre de Avis, raros à dos filhos de D. Inês, bando que, de certo modo, era uma pequena excrescência no que seguia a voz de D. Beatriz. Grande número de fidalgos, conservando-se neutros no meio desta célebre luta ou passando de um para outro lado, segundo as probabilidades do triunfo ou segundo seus ódios e amizades particulares, ajudaram a protrair uma guerra que deixou Portugal devastado, e empobrecidos para muito tempo os remos de Leão e Castela.

 

Do número dos irresolutos foi a princípio o abade de Alcobaça, que, senhor de quinze vilas e de dois castelos e fronteiro de quatro portos de mar, seria sem dúvida aliciado por ambos os partidos contendores para se unir a eles. De um documento, mandado exarar em Abril de 1385 pelo arcebispo de Braga, D. Lourenço, se vê que o reverendo abade favorecera el-rei de Castela, prestando-lhe abundantes vitualhas para o seu exército quando viera sobre Lisboa. É certo, porém, que quando se deu a batalha de Aljubarrota ele mandou seu irmão Martim de Ornelas com um bom troço de gente em socorro do Mestre de Avis, pelo qual se havia formalmente declarado na Cortes de Coimbra, celebradas pouco antes e em que o Mestre fora proclamado rei. Desde então este poderoso vassalo da coroa, que antevira o triunfo provável da causa da nacionalidade e da independência portuguesa, ganhou na corte de D. João I notável importância e valia, maior porventura da que tivera como simples abade de Alcobaça, se muitos fidalgos principais não houvessem seguido a bandeira do rei castelhano. Ou fosse que o Mestre de Avis quisesse cumprir as promessas feitas para tornar D. João de Ornelas seu parcial, ou fosse, como se diz, que o movesse um sentimento de gratidão, é facto que concedeu a esse homem, a um tempo frade, alcaide-mor e fronteiro, privilégios extraordinários. Servido por pajens e escudeiros nobres, D. João de Ornelas convertera a veneranda e tranquila mansão dos monges de Alcobaça em paços de ricohomem. Acompanhavam-no em suas viagens cavaleiros e homens de armas, cujos foros e regalias corriam parelhas com os daqueles que serviam e acompanhavam o próprio D. João I. A grandeza e o luxo do sacerdote-cavaleiro eram objecto de geral admiração e inveja, a ponto de haver, até, quem dissesse que tal maneira de vida desdizia o que quer que fosse dos preceitos do Evangelho e não se casava exactamente com a regra monástica de 8. Bento, patriarca não só dos monges negros ou beneditinos, mas também dos monges brancos ou cistercienses.

 

Elevado a tal grau de poderio e dotado de carácter violento, ambicioso, altivo para com os grandes, opressor para com os pequenos, D. João de Ornelas chegara a obter a triste distinção de ser temido e odiado em geral por pequenos e grandes, principalmente pelos vassalos do mosteiro, que vexava sem piedade. Quando el-rei, nas contínuas jornadas que o obrigava a fazer pelo reino a guerra com Castela, ia casualmente pousar a Alcobaça, quem visse o aparato com que era hospedado diria que o monarca recebia gasalhado de um príncipe seu igual; tão bem soubera D. João de Ornelas transportar para o ermo as delícias da corte. As despesas desarrazoadas que o fastoso monge fazia, assim nestes casos especiais, como no seu trato e viver ordinário, recaíam, todavia, não só sobre os rendimentos da ordem, que por sua morte ficaram grandemente dilapidados, mas também e principalmente sobre os miseráveis povoadores dos coutos, que viam desbaratar o fruto do seu trabalho nas mãos perdulárias do muito reverendo abade, com quem, por assim dizer, viviam em contínua guerra.

 

Era pelo fim da tarde do belo dia primeiro de Maio em que Fr. Lourenço embarcara para Restelo, O Sol reflectia os seus raios derradeiros nos largos panos da muralha ocidental de Lisboa, e no Colégio de S. Paulo tangia a campa a completas quando chegou à portaria uma numerosa cavalgada que, subindo das Portas da Cruz, passara em frente dos Paços dos Infantes e viera para aí. Um frade bernardo alto, grosso e rubicundo, montado em uma possante mula branca, caminhava à frente da cavalgada, conversando e rindo com dois cavaleiros mancebos que o acompanhavam de um e outro lado e que sofreavam por tal arte as mulas em que vinham, que os três animais quadrúpedes, debaixo dos três bípedes, formavam uma espécie de trempe ou triângulo cujo vértice era a nédia cavalgadura de sua reverendíssima. Seguiam-se mais de trinta homens de armas entre lanceiros e besteiros de cavalo, o que bem provava a importância do personagem que os capitaneava e ao mesmo tempo o estado revoltoso do país, que obrigava um monge a viajar com tal cópia de soldados e, além disso, a vestir armas, como era fácil de notar vendo debaixo da túnica arregaçada de sua paternidade os coxotes, grevas e sapatos de ferro, que bem davam a entender não faltariam também, debaixo da cogula e do escapulário, boas solhas de arnês liso ou cota de malha à prova de lança e de espada.

 

Era o frade, como o leitor já terá percebido, o mui nobre D. João de Ornelas, abade de Santa Maria, esmoler-mor de el-rei, do seu conselho, donatário da Coroa, fronteiro-mor e senhor das terras e vilas dos coutos do mosteiro com alçada no cível e no crime. O motivo da sua vinda a Lisboa fora o ajuntamento de cortes, que el-rei queria celebrar, e para as quais começavam a apresentar-se na capital, onde se devia fazer o auto, os fidalgos e prelados do reino, entre os quais tinha um dos primeiros lugares o muito reverendo abade. E ainda que o Colégio de 8. Paulo não oferecia todas as comodidades necessárias para tão ilustre e respeitável magnate, todavia ele preferia fazer residência em uma casa habitada por membros da sua ordem a outra qualquer pousada grandiosa, querendo, talvez, mostrar com isso que antepunha a todas as magnificências profanas a vida monástica, áspera em si, é verdade, mas que de sabia converter em existência de suavidades e deleites, sem lhe tirar o perfume da santidade do claustro.

 

Apenas descavalgou, D. João de Ornelas deu várias ordens aos dois cavaleiros, que partiram com a gente de armas, e seguido de todos os frades e barbatos, que tinham vindo esperá-lo à portaria, subiu com aspecto risonho e ademanes cortesãos para a cela do reitor do colégio, que, de relance e atrapalhado, ia incumbindo ao leigo encarregado da cozinha uma ceia mais lauta que de costume e ao mesmo tempo respondia às perguntas que sobre o governo e estado da casa lhe fazia D. João de Ornelas.

 

Apenas tinha cessado o tumulto causado pela chegada do nobre hóspede quando Fr. Lourenço, Fr. Vasco e o mouro cruzaram o limiar da portaria. 

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