Drácula Capítulo XVIII
DIÁRIO DO DR. SEWARD
30 de setembro — Cheguei em casa às cinco horas e vi que Godalming e Morris não só já haviam chegado como já tinham estado todos os papéis que Harker e sua encantadora mulher arranjaram.
- Posso lhe pedir um favor? — perguntou a Sra. Harker. — Queria ver seu doente. O que o senhor disse a respeito, dele no diário me interessa muito.
Pediu com tanto empenho que não pude recusar-lhe. Fui ao quarto de Renfield e lhe disse que uma senhora estava querendo vê-lo.
- Por quê — retrucou ele, simplesmente.
- Está visitando a casa e quer ver todo o mundo aqui — respondi.
- Está bem — disse ele. — Pode trazé-1a. Mas espere um minutinho, para eu fazer uma limpeza aqui no quarto.
Seu método de fazer limpeza era bem original: engoliu todas as moscas e aranhas das caixinhas, antes que eu pudesse impedir.
Quando terminou sua repelente tarefa, anunciou, jovialmente:
- Pode mandar a dama entrar.
Sentou-se na cama, de cabeça baixa, mas com os olhos levantados. Por um momento, tive medo que estivesse com intenções homicidas, e fiquei ao lado dele, pronto para agir, se fosse preciso.
A Sra. Harker entrou sorridente e estendeu a mão, cumprimentando amavelmente o louco. Ele a olhou durante algum tempo, depois exclamou, causando-me grande espanto:
- A senhora não é a moça com quem o doutor queria casar, não é? Não pode ser, pois sei que ela está morta.
- Não — respondeu ela. — Já era casada antes de conhecer o Dr. Seward. Sou a Sra. Harker.
- Que está fazendo aqui?
- Eu e meu marido viemos fazer uma visita ao Dr. Seward.
- Então, não demore.
- Por quê?
Achei que a conversa não devia estar agradando a Sra. Harker e intervi, perguntando:
- Como soube que eu queria me casar com alguém?
- Que pergunta idiota! — disse Renfield.
- Não vejo porque, Sr. Renfield.
- A senhora deve compreender — disse o doido voltando-se para ela — que, quando um diretor de estabelecimento é estimado como é o Dr. Seward, tudo quanto lhe diz respeito é de interesse de nossa pequena comunidade. O Dr. Seward é estimado não apenas pelos seus parentes e amigos, mas também pelos seus pacientes, alguns dos quais, devido ao desequilíbrio mental, costumam confundir a causa com o efeito. Como eu mesmo tenho estado internado num hospício, não posso deixar de observar que as tendências sofisticadas de alguns dos doentes conduzem a erros.
Fiquei espantado. Como seria possível aquele louco estar falando sobre filosofia e se portando como um cavalheiro? Fosse espontâneo ou devido a influência inconsciente da Sra. Harker, o fato é que ela devia ter alguma qualidade ou poder raro.
Continuamos a conversar e, vendo que ele parecia inteiramente razoável, a Sra. Harker se aventurou a falar sobre o assunto favorito dele, depois de me ter consultado com um olhar. De novo fiquei assombrado, pois ele respondeu com a imparcialidade de uma pessoa mentalmente sã.
- Eu mesmo sou o exemplo de um homem que tive uma estranha crença. Não é de admirar que meus amigos tenham se alarmado e tratado de me colocar sob vigilância. Convenci-me de que era possível prolongar indefinidamente a vida consumindo uma multidão de seres vivos, por mais baixos que fossem na escala da criação. Algumas vezes, acreditei com tal convicção que tentei matar. O doutor pode confirmar que, certa vez, tentei matá-lo, a fim de aumentar minhas forças vitais pela assimilação em meu corpo da sua vida, através do sangue, baseando-me, naturalmente, na frase das Escrituras “Pois o sangue é a vida”. Na verdade, o vendedor de certas panacéias vulgarizou o tratamento até o ponto de se tornar desprezível, não é mesmo, doutor?
Fiz que sim com a cabeça, pois estava espantado demais para saber o que dizer ou pensar. Não podia acreditar que, ainda cinco minutos antes, aquele homem estava comendo moscas e aranhas.
Consultei o relógio e vi que estava na hora de ir esperar o Dr. Van Helsing na estação. Avisei a Sra. Harker, que me acompanhou até fora do quarto, depois de ter se despedido amavelmente de Renfield, que disse:
- Adeus. Espero nunca mais ver seu rosto bondoso. Que Deus a abençoe e a proteja! Van Helsing estava animado ao desembarcar.
- Tudo vai bem? — perguntou-me. — Deixei todos os meus negócios em ordem e poderei demorar-me, se houver necessidade. Todos estão com você .
Informei-o das novidades de que dispúnhamos e, terminado o jantar, levou uma cópia dos papéis, a fim de estudá-los, antes da nossa reunião, que está marcada para as nove horas.
DIÁRIO DE MINA HARKER
30 de setembro — Duas horas depois do jantar, estávamos reunidos no gabinete do Dr. Seward. O professor Van Helsing ficou na cabeceira e eu à sua direita, fazendo as funções de secretária; Jonathan sentou-se perto de mim. Em frente estavam Lord Godalming, o Dr. Seward e o Sr. Morris.
- Creio — começou o professor — que devo dizer algumas palavras sobre o inimigo que temos de enfrentar. Os vampiros existem. Não podemos duvidar disso. Mas, se fomos incapazes de salvar a desventurada Miss Lucy, temos o dever de trabalhar para que outras almas não pereçam, quando as podemos salvar. O nosferatu não morre como a abelha quando se pica. Fica mais forte e mais capaz de praticar o mal. Esse vampiro que está entre nós é mais forte que vinte homens; é mais astucioso que qualquer mortal e se vale, ainda, da necromancia; pode, dentro de certas limitações, aparecer à vontade, sob qualquer das formas de que dispõe; pode, dentro de sua categoria, dirigir os elementos: a tempestade, o nevoeiro, o raio; pode dar ordem a seres inferiores: o rato, o morcego, a coruja, a raposa e o lobo; pode crescer e tornar-se pequeno; e pode, às vezes, desaparecer e tornar-se desconhecido. Não será fácil destruí-lo. Mas temos um dever diante de nós e não podemos recuar. Quanto a mim, estou velho, e pouco tenho a perder. Mas vocês são moços. Que me dizem?
Quando o professor terminou eu e meu marido encaramo-nos bem nos olhos, e ele exclamou:
- Respondo por mim e por Mina.
- Conte comigo, professor — disse Quincey Morris, laconicamente.
- Estou com o senhor — disse Lord Godalming. — Por causa de Lucy, se não houvesse outro motivo.
O Dr. Seward limitou-se a um aceno de cabeça.
- Muito bem — prosseguiu o Dr. Van Helsing. — Já sabem contra o que temos de lutar; mas não carecemos, também, de poderio. Temos a ciência, temos liberdade de agir e raciocinar e podemos dispor tanto das horas do dia quanto da noite. Lutamos por uma causa, anos pela abnegação e não pelo egoísmo. Tudo isso tem grande importância.
Vejamos as limitações dos vampiros em geral e, em particular, daquele contra o qual temos que lutar. O vampiro não morre com a passagem do tempo simplesmente; fortalece-se, quando pode dispor do sangue dos vivos. E mais do que isso, vemos que pode mesmo rejuvenescer. Mas não pode se fortalecer sem a dieta de sangue; não come outra coisa. O amigo Jonathan que morou com ele durante semanas, jamais o viu comer. Não produz sombra, nem se reflete no espelho, como Jonathan também teve ocasião de constatar. Tem uma força prodigiosa, outra constatação de Jonathan. Pode se transformar em lobo, como deduzimos pela chegada do navio a Whitby, onde ele despedaçou um cão; pode se transformar em morcego, como Madame Mina viu na janela em Whitby e como foi visto na janela do quarto de Lucy. Pode surgir no meio do nevoeiro, como mostrou o capitão do navio, as parece que esse nevoeiro é limitado e só fica em torno dele próprio. Pode vir sob a forma de poeira, como Jonathan viu se dar com as irmãs no castelo de Drácula. Pode se tornar pequeníssimo, como nós próprios vimos, quando Miss Lucy entrou numa fenda diminuta para o túmulo. Pode ver no escuro, o que é uma grande coisa. Pode fazer tudo isso, mas não é livre. Está mais preso que o escravo na galé ou o louco na cela. Não pode ir aonde quer. Não pode entrar em lugar algum pela primeira vez, a não ser que alguém da casa o convide, embora, depois, possa entrar à vontade. Seu poder, como o de todas as coisas malignas, cessa com o nascer do dia. Apenas em certas ocasiões tem uma liberdade ilimitada. Se não está no lugar ao qual pertence, só pode se mudar ao meio-dia ou no momento exato do nascer e do pôr do sol. Assim, ao passo que pode fazer o que quer dentro de seus limites, quando mora em seu túmulo, sua casa infernal, seu lugar sacrílego, como vimos na cova do suicida em Whitby; em outras ocasiões, só pode se mudar na oportunidade propícia. Existem coisas que o afligem tanto que não tem poder contra elas, como o alho, que nós conhecemos, e entre as coisas sagradas, como símbolo, meu crucifixo. Há ainda outras coisas: um ramo de rosa-silvestre colocado no seu caixão o impede de sair de lá; uma bala abençoada disparada contra seu caixão mata-o de verdade, e, quanto à estaca, vocês já conhecem seu poder, assim como a cabeça cortada. Vimos isto com nossos próprios olhos. Assim, precisamos descobrir a habitação desse ex-homem, prendê-lo em seu caixão e destruí-lo.
O Sr. Morris, que estava olhando atentamente para a janela, saiu nesse momento do aposento. Houve uma pequena pausa, e o professor prosseguiu:
- E, agora, vamos traçar os planos de nossa campanha. Sabemos que do castelo vieram para Whitby cinqüenta caixas de terra, todas as quais foram entregues em Carfax; também sabemos que pelo menos algumas dessas caixas foram removidas. Parece-me, que a primeira coisa que devemos fazer e verificar se o resto das caixas está na casa vizinha deste hospício.
Um tiro de pistola, disparado do lado de fora, o interrompeu; a vidraça da janela foi quebrada por uma bala, que, ricocheteando, foi se cravar no alto da parede do gabinete. Todos os homens se puseram de pé. Lord Godalming correu até a janela e abriu-a.
Ouvimos, então, a voz do Sr. Morris, vinda do lado de fora:
- Desculpem-me por té-los assustado.
Um minuto mais tarde, tendo voltado, ele nos explicava:
- Foi uma tolice minha, e peço-lhe mil desculpas, Sra. Harker. Receio tê-la assustado muito. Mas é que, enquanto o professor estava falando, apareceu um grande morcego... que pousou no peitoril da janela. Por causal destas coisas que têm acontecido, tomei tanto horror desses bichos, que não pude me conter e sàí, pga atirar nele, como faço, agora, sempre que vejo um morcego.
- Acertou? — perguntou o Dr. Van Helsing.
- Não sei; acho que não, pois ele fugiu para o bosque. — Tornamos a nos sentar e o professor prosseguiu:
- Precisamos descobrir aquelas caixas ou capturar ou matar aquele monstro em seu esconderijo; ou, então, por assim dizer, esterilizar a terra, de maneira que ele não possa mais procurar proteção nela. Assim, poderíamos encontrá-lo em sua forma de homem, entre o meio-dia e o pôr do sol, quando ele é mais fraco. Quanto à senhora, Madame Mina, de agora em diante deve se poupar. Quando nos separarmos hoje, a senhora não deve mais fazer perguntas. Oportunamente, nós lhe diremos tudo. A senhora é nossa estrela e nossa esperança e queremos agir sabendo que não corre os mesmos perigos que nós.
Nada pude fazer, a não ser concordar.
- Como não há tempo a perder, proponho irmos imediatamente ver a casa dele — exclamou Morrís. — Para combate-lo, o fator tempo é da máxima importância.
A proposta foi aceita e todos saíram. Vou deitar-me e fingir que estou dormindo, para que Jonathan não fique ainda mais aflito quando voltar.
DIÁRIO DO DR. SEWARD
11 de outubro, 4 da manhã — Justamente quando íamos sair, chegou-me um recado urgente de Renfield, dizendo que queria me ver imediatamente, pois tinha uma comunicação importantíssima para fazer. Disse ao mensageiro para responder que iria vê- lo na manhã seguinte, mas o guarda observou:
- Ele parece estar muito aflito e receio que tenha um acesso de fúria se o senhor não for.
Achei mais prudente vé-lo e segui acompanhado de todos os outros, que estavam com curiosidade de ver o louco. Encontramo-lo muito agitado, mas muito mais racional em suas palavras e nos seus modos do que sempre. Queria que eu lhe desse liberdade
imediatamente, a fim de voltar para casa. Justificava sua pretensão com argumentos sobre seu restabelecimento.
- Apelo para os seus amigos — acrescentou. — A propósito: o senhor não nos apresentou.
Fiz as apresentações. Renfield apertou a mão de cada um.
- Lord Godalming — disse — tive a honra de conhecer seu pai em Windham; lamento saber, pelo fato do senhor estar usando o título, que ele já não vive; sei, que, em sua mocidade, inventou um famoso ponche de rum. Sr. Morris, o senhor deve se sentir orgulhoso de seu grande Estado. Sua recepção na União foi um precedente que pode ter conseqüências de longo alcance. E que direi do prazer de conhecer Van Helsing? Não me desculpo por ter dispensado os prefixos cerimoniosos. Quando um indivíduo revoluciona a medicina com sua descoberta sobre a evolução contínua do cérebro, as formas convencionais tornam-se supérfluas. Os senhores, que, pela nacionalidade, hereditariedade ou pela posse de dons naturais, estão em condições de ocupar lugares destacados no mundo, podem ser testemunhas de que tenho o espírito tão lúcido como pelo menos a maioria dos homens que gozam de sua liberdade. E estou certo de que o senhor, Dr. Seward, que não é somente um cientista, mas um médico humanitário, sentir-se-á no dever moral de tratar-me como alguém que merece ser considerado dentro de circunstâncias especiais.
Creio que todos ficaram estupefatos. Quanto a mim, fiquei convencido de que, a dos antecedentes, o homem tinha recuperado a razão; e tive vontade de dizer-lhe isto e anui3ciar-lhe que, no dia seguinte cedo, tomaria as devidas providências para que ele fosse posto em liberdade. Mas, refletindo melhor, contive-me e disse-lhe apenas que, de fato, parecia estar melhorando muito e que, no dia seguinte, teria uma conversa prolongada com ele, para estudar a possibilidade de satisfazer seus desejos.
- Creio — retrucou ele, vivamente.
Como eu não respondesse, ele me olhou, depois olhou para os outros.
- Será possível que errei em minha suposição? — perguntou.
- Errou — respondi, com uma franqueza que eu mesmo achei brutal.
- Então, acho que devo modificar a natureza do pedido. Permita-me que peça essa concessão, esse privilégio. Sou levado a implorar em tal caso, não por motivos pessoais, mas para bem de outros. Não posso lhe explicar todos os motivos, mas pode acreditar que me são ditados pelo dever. Se pudesse ler o meu coração, aprovaria inteiramente os sentimentos que me animam. E, mais do que isso, poderia me considerar um de seus melhores e mais leais amigos.
Van Helsing, que o encarava fixamente, perguntou-lhe, então:
- Pode me dizer, com toda a franqueza, o verdadeiro motivo que o leva a desejar ser posto em liberdade esta noite? Se me disser, comprometo-me a conseguir que o Dr. Seward lhe conceda o que pede.
- Nada posso dizer — retrucou Renfield. — Se eu pudesse, não hesitaria um momento; mas não sou senhor de mim mesmo nessa questão. Só lhe posso pedir que confie em mim. Se me recusarem, a responsabilidade não recairá sobre mim.
Achei que era tempo de acabar com aquilo e convidei os outros a se retirarem.
- Vamos, meus amigos. Temos um trabalho a fazer. Boa noite.
Ao nos aproximarmos da porta, porém, nova mudança ocorreu com o enfermo, que caiu de joelhos, implorando-me, de mãos postas que o deixasse sair.
- Deixe-me sair desta casa imediatamente, Dr. Seward! Mande-me para onde quiser; mande-me acompanhado de guardas, com correntes e chicotes; mande-me numa camisa- de-força, dentro de uma jaula, mas deixe-me sair daqui. Não sabe o que está fazendo ao manter-me aqui, e eu não posso dizer. Estou lhe implorando do fundo do coração, do fundo da alma. Pelo amor do Onipotente tire-me daqui e salve minha alma! Deixe-me sair! Deixe- me sair!
Achando que quanto mais aquilo se prolongasse mais furioso ficaria ele, segurei-o por um braço e levantei-o.
- Acabe com isto — exclamei, com energia. — Vá para sua cama e fique quieto.
Ele parou e me encarou, fixamente, durante algum tempo. Depois, sem dizer uma palavra levantou-se e sentou-se na cama.
Quando eu estava saindo do quarto, disse-me, com muita calma:
- Estou certo, Dr. Seward, que, mais tarde, o senhor me fará justiça, reconhecendo que fiz o que pude para convencê-lo esta noite.
Indíce
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