Drácula Capítulo XXII
DIÁRIO DE JONATHAN HARKER
3 de outubro — Como preciso fazer ala coisa, para não enlouquecer, resolvi escrever este diário.
Depois de mais ou menos refeitos dos terríveis acontecimentos da noite passada, tratamos de discutir qual a providência que deveríamos tomar em seguida e a primeira coisa que resolvemos foi não esconder coisa alguma de Mina, por mais Penosa que fosse.
Ela própria concordou com isso, observando:
- Aliás, nada poderia haver no mundo capaz de me fazer sofrer mais do que o que já sofri e estou sofrendo. Não me assusta a realidade. Estou disposta a morrer, se notar que posso fazer mal a quem amo.
- Não diga uma coisa destas! — protestou Van Helsing. — A senhora não pode morrer, enquanto o outro, que conspurcou sua vida, não tenha morrido de verdade, pois, se ele ainda for Não-Morto, a morte da senhora a tornará igual a ele.
A minha pobre Mina ficou lívida, mas exclamou, corajosamente:
- Prometo-lhe, caro amigo, que, se Deus me deixar viver, lutarei para isso, até que, graças a ele, fique livre dessa maldição.
Passamos, então, a discutir nossos planos de ação.
- Até o fim do dia de hoje — disse Van Helsing — aquele monstro conservará a forma que tem agora. Está preso, dentro de suas limitações, em seu invólucro de terra. Não pode se dissolver no ar nem passar através das fendas. Se passar por uma porta, terá que abri- la, como um mortal. Assim, temos o dia de hoje para procurar todos os seus refúgios e esterilizá-los. Se não o tivermos ainda descoberto e destruido, teremos que obrigá-lo a se esconder em algum lugar onde possamos, afinal, com segurança, encontrá-lo e destruí-lo. Temos de agir com a máxima presteza. E, muito provavelmente, a chave da situação é aquela casa de Piccadilly. É possível que o Conde tenha comprado muitas casas e, em tal caso, terá as escrituras de compras, as chaves e outras coisas. Deve ter papel para escrever um talão de cheques. Precisa de um lugar para guardar todas essas coisas; por que será naquele lugar tão tranqüilo e onde pode entrar e sair pela frente e pelos fundos, a qualquer hora, protegido pela própria intensidade do movimento?
- Então vamos logo — exclamei. — Que tempo é precioso!
- Mas como entraremos na casa de Piccadilly? — retrucou o professor.
- De qualquer maneira. Mesmo que seja preciso arrombá-la!
- E a policia?
- Não espere mais do que o necessário. Estou certo de que sabe a angústia em que me encontro.
- Na verdade, meu filho, não há necessidade de aumentar sua angústia — disse Van Helsing. — Mas precisamos de uma chave para entrar, não é mesmo?
- Arranjarei um serralheiro respeitável e o mandarei ajustar a fechadura para mim.
- E a polícia?
- Não intervirá, se souber que o homem está trabalhando autorizado.
Mina estava se interessando por tudo e regozijei-me vendo que as exigências das tarefas que tínhamos de realizar a estavam fazendo esquecer um pouco das angústias da noite.
Mas estava pálida, lívida, e tão magra que seus lábios estavam afastados, mostrando os dentes um tanto salientes. Nem gosto de pensar nisto. Mas o tempo urge.
Quando Passamos a discutir a seqüência de nossos esforços, resolvemos, em vez de começar em Piccadilly, destruir o esconderijo do Conde mais à mão.
Quanto à distribuição de forças, o professor sugeriu que, depois de nossa visita a Carfax, nós todos fóssemos à casa de Piccadilly e que eu e os dois médicos ficássemos ali, enquanto Lord Godalming e Quincey fossem descobrir e destruir os esconderijos de Walworth e Mile End. Opus-me a esse plano, pois não queria me separar de Mina, mas ela
não concordou comigo, dizendo que eu devia ir, pois minha experiência poderia ser muito útil no exame dos papéis do conde, e acrescentou que a única esperança que lhe restava era que todos trabalhássemos juntos.
- Quanto a mim, não tenho medo — exclamou. — Vá, meu marido! Deus, se assim quiser, pode me proteger sozinha.
- Então — disse eu — em nome de Deus, partamos imediatamente, pois estamos perdendo tempo. O Conde pode aparecer mais cedo em Piccadilly do que pensamos.
- Está se esquecendo de que ele se banqueteou fartamente na noite passada e que, portanto vai dormir até tarde? — retrucou Van Helsing.
Mal acabara de falar, arrependeu-se de sua distração e pediu muitas desculpas a Mina.
- Não tem importância — disse ela, com lágrimas nos olhos. — É uma coisa que eu própria não conseguirei esquecer. Mas o café está pronto e vocês todos precisam comer.
Durante a refeição, tentamos, em vão, nos mostrar alegres e Mina foi a que fez mais esforço.
- E agora, a caminho, para nossa terrível empresa meus amigos! — exclamou Van Helsing. — Todos estão armados como estávamos naquela noite em que estivemos pela primeira vez no esconderijo do inimigo? A senhora estará em perfeita segurança aqui, Madame Mina, até o pôr do sol. Mas, antes de partirmos, quero vê-Ia armada contra um ataque pessoal. Já preparei seu quarto com as coisas que o impedirão de entrar. Agora vou tratar de protegê-la diretamente, encostando a Hóstia Sagrada em sua testa, em nome do Padre, do Filho e do...
Ouvimos um grito horrível, que nos cortou o coração. Ao tocar a testa de Mina, a Hóstia se queimara como se tivesse sido colocada numa chapa de ferro incandescente. Minha pobre esposa, escondendo o rosto nas mãos, começou a gritar:
- Estou contaminada! Até o Onipotente evita a minha carne contaminada! Trarei essa marca de vergonha em minha fronte até o Dia do Juízo Final!
Abracei-a, tentando consolá-la, enquanto nossos amigos viravam o rosto, procurando esconder as lágrimas.
- Madame Mina — disse Van Helsing, com voz emocionada — pode ficar certa de que essa cicatriz desaparecerá quando Deus tiver visto o peso que colocou sobre nós. Até então, temos de carregar nossa Cruz, como Seu Filho carregou, em obediência à Sua Vontade.
Pode ser que tenhamos sido escolhidos para instrumentos de seu prazer e que nos elevemos a ele através de vergonha, lágrimas, sangue, dúvidas, temores e tudo que constitui a diferença entre Deus e o homem.
Mina sentiu-se confortada com essas palavras. E, sem dizermos uma palavra, nós todos nos ajoelhamos e rezamos por ela.
Era tempo de partir. Despedi-me de Mina, numa despedida de que nunca mais hei de me esquecer em minha vida, e partimos.
Uma coisa já resolvi: se virmos que Mina acabará sendo um vampiro, não irá sozinha para aquela região desconhecida e terrível. Creio que era assim que, nos velhos tempos, os vampiros se multiplicavam; do mesmo modo que seus horríveis corpos só podiam descansar em terra sagrada, assim também o mais santo amor era quem recrutava suas sinistras legiões.
Entramos em Carfax sem dificuldade e encontramos tudo como se encontrava na primeira ocasião.
- E agora, meus amigos — exclamou o Dr. Van Helsing, solenemente — temos que esterilizar a terra que ele trouxe de um país distante para uso tão sórdido. Ele escolheu essa terra porque era sagrada. Vamos derrotá-lo com suas próprias armas, pois a tornaremos ainda mais sagrada.
Enquanto falava, tirou da valise uma chave de fenda e abriu logo o primeiro caixote.
Depois, tirou da valise, reverentemente, um pedaço da Hóstia Sagrada, que espalhou sobre a terra. Logo em seguida tratou de tampar de novo o caixão e, em breve, já tínhamos feito o mesmo com todos os outros caixotes.
Ao passarmos diante do hospício, a caminho da estação, olhei, ansiosamente, e vi Mina na janela do nosso quarto e acenei-lhe com a mão dando a entender que tínhamos sido bem sucedidos. Ela me acenou também, demonstrando ter entendido.
Escrevi isto no trem.
Piccadilly, 12:30 — Antes de chegarmos a Fenchurch Street, Lord Godalming me disse:
- Eu e Quincey vamos procurar um serralheiro. É melhor o senhor não vir conosco, pois chamará menos atenção ao entrarmos numa casa vazia. Meu título será útil para arranjar as coisas com o serralheiro e com algum policial que possa aparecer. Quando vir a janela aberta, quer dizer que tudo correu bem e o senhor poderá entrar.
- O conselho é bom — concordou Van Helsing.
Godalming e Morris tomaram um carro de aluguel e nós seguimos em outro. Na esquina de Arlington Street senti o coração bater com muita força, ao avistar a casa em que se concentravam as nossas esperanças. Sentamo-nos num banco e começamos a fumar, de maneira a atrair o menos possível a atenção dos transeuntes. Os minutos se arrastavam.
Afinal, vimos parar diante da casa muita carruagem de quatro rodas, muito à vontade, Lord Godalming e Morris, ao mesmo tempo que saltava da boléia um homem carregando um cesto de ferramenta! Lord Godalming mostrou ao operário o que vinha fazer e ele tirou o paletó, pendurando-o na grade que havia em frente da casa, enquanto dizia alguma coisa a um policial, que acabara de aparecer. O policial sacudiu a cabeça, em sinal de aquiescência, e se afastou, enquanto o serralheiro ajoelhava-se junto da porta e punha mãos à obra. Não tardou muito o trabalho estava terminado e, despedido o operário, os dois homens entraram. Eu e Van Helsing esperamos algum tempo, depois atravessamos a rua e batemos na porta da casa, que foi aberta imediatamente por Quincey Morris, ao lado do qual estava Lord Godalming, acendendo um charuto.
- A casa está com um cheiro horrível — disse o último.
Era o mesmo cheiro de Carfax e não havia dúvida de que o Conde estava se utilizando da casa. Tratamos logo de examiná-la, andando todos juntos, para o caso de um ataque. Na sala de jantar, encontramos apenas oito das nove caixas que estávamos procurando. Nosso trabalho não terminara, pois não podíamos descansar enquanto não tivéssemos localizado a última caixa.
Depois de uma busca rigorosa, chegamos à conclusão de que se encontravam na sala de jantar todos os objetos pertencentes ao Conde. Estes consistiam nas escrituras das casas de Piccadilly, Mile End e Bermondsey, papéis para carta, envelopes e tinha tudo embrulhado por causa da poeira, e também uma escova de roupa, pente, um jarro e uma bacia com água suja, que parecia avermelhada com sangue. Havia, finalmente um molho de chaves de todas as espécies e tamanhos, provavelmente pertencentes às outras casas.
Lord Godalming e Morris tomaram nota dos endereços das outras casas e se muniram com as chaves das mesmas, a fim de destruir as caixas que se encontravam naqueles lugares. O resto do grupo tinha de esperar pacientemente seu regresso — ou o aparecimento do Conde.
Indíce
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