Drácula Capítulo XXVII
DIÁRIO DE MINA HARKER
1 de novembro — Viajamos durante todo o dia, a boa velocidade. O Dr. Van Helsing tem se mostrado lacônico; diz aos camponeses que estamos com pressa de chegar a Bistritz e pagá-los bem para fazerem a muda dos cavalos. Parece que não se cansa; não repousou durante todo o dia, embora tivesse me obrigado a dormir bastante. Ao anoitecer, hipnotizou-me e, segundo me contou, minha resposta foi a habitual: escuridão, água batendo e estalidos de madeira. Portanto, nosso inimigo ainda está no rio. Escrevo isto enquanto esperamos, numa fazenda, que aprontem os cavalos. Já vamos partir...
2 de novembro, pela manhã — Consegui dirigir a carruagem, enquanto Van Helsing descansava e, assim nos revezando, viajamos durante toda a noite. Agora, estamos em pleno dia, claro, apesar de frio.
Há na atmosfera um peso estranho — digo peso por falta de um termo melhor. Ambos sentimo-nos oprimidos. Ao amanhecer, Van Helsing me hipnotizou e disse que eu respondi: “escuridão, madeira estalando e água rugindo”, o que quer dizer que o rio está mudando, à medida que sobe. Espero que meu marido não esteja correndo perigo — mais do que seja necessário; mas estamos nas mãos de Deus.
2 de novembro, à noite — Viajamos todo o dia. A região está se tornando mais selvagem, à medida que nos aproximamos das encostas dos Cárpatos. O Dr. Van Helsing diz que amanhã cedo chegaremos ao Passo de Borgo. Os cavalos são muito poucos agora e os que restam terão que seguir conosco, pois não poderão ser mudados. Atravessaremos o Passo de Borgo de dia; não queremos chegar antes.
MEMORANDO DE ABRAHAM VAN HELSING
4 de novembro — Para o meu velho e leal amigo John Seward, médico de Purfleet, em Londres, para o caso de não me ver. Estamos de manhã e escrevo junto de uma fogueira que eu e Madame Mina conservamos acesa durante toda a noite. Está fazendo muito frio e Madame Mina está dormindo. Ao anoitecer, tentei hipnotizá-la. mas, infelizmente, sem resultado.
Chegamos ao Passo de Borgo logo depois do amanhecer de ontem. Ao ver os sinais da aurora, preparei-me para hipnotizar Madame Mina. Paramos a carruagem e descemos.
Preparei uma cama com peles, fi-la deitar-se e com muito mais rapidez que sempre, ela ficou hipnotizada. Como antes, veio a resposta: “escuridão e o burburinho da água” Depois, acordou, muito bem disposta, e, em breve chegamos ao Passo. Nessa ocasião, algum novo poder pareceu se manifestar nela, pois apontou para a estrada, dizendo:
- Este é o caminho.
- Como sabe? — perguntei.
- Naturalmente o conheço — disse ela, acrescentando, depois de uma pausa — Jonathan não viajou por ele e descreveu viagem?
A princípio, achei estranho, mas depois vi que só existia aquele caminho transversal. Seguimos por ele. Aos poucos, fomos encontrando tudo que Jonathan descreveu em seu diário. Viajamos durante muitas horas. Eu disse a Madame Mina para dormir e ela dormiu de fato durante muito tempo, tanto que fiquei desconfiado e tentei acordá-la. Afinal, depois de muito tempo, consegui despertá-la. Tentei hipnotizá-la, algum tempo depois, mas não consegui. Quando terminei os meus inúteis esforços, escurecera de todo. Madame Mina deu uma risada. Está acordada, agora, e parece tão bem disposta como eu nunca mais a vira, desde aquela noite em Carfax, quando entramos, pela primeira vez, em casa do Conde. Estou um tanto intrigado, mas ela está tão alegre e atenciosa comigo, que me esqueço de todos os temores. Acendi uma fogueira e, enquanto ela preparava a comida, fui cuidar dos cavalos. Quando voltei, a comida já estava pronta, mas ela não quis comer comigo, dizendo que estava com tanta fome que não agüentara me esperar. Não gostei disso, mas tive medo de assustá-la e nada disse. Distraí-me ao comer e, quando a olhei de novo, ela estava acordada, mas encarando-me com os olhos muito brilhantes. Dormi até pouco antes do amanhecer. Tentei hipnotizá-la, mas sem resultado. Quando o sol se levantou foi que ela adormeceu profundamente. Tive de carregá-la para a carruagem, depois de ter selado e atrelado os animais. Ela continua a dormir, parecendo mais bem disposta que nunca. E eu tenho medo, muito medo!
5 de novembro, pela manhã — Viajamos ontem o dia inteiro, aproximando-nos cada vez mais das montanhas e atravessando uma região cada vez mais selvagem. Madame Mina continuava dormindo, e o sol estava baixando. Mas de repente, a paisagem mudou: as montanhas Pareciam afastar-se e chegamos perto do alto de uma colina íngreme com um castelo igual ao que Jonathan descreveu em seu diário. Regozijei-me e estremeci ao mesmo tempo pois agora, para o bem ou para o mal, o fim estava próximo.
Acordei Madame Mina e mais uma vez tentei hipnotizá-la, em vão. Acendi uma fogueira e preparei a comida, mas ela não comeu, protestando, simplesmente, falta de apetite. Não a forcei, mais tratei de comer, pois sabia que precisava mostrar-me muito forte, para enfrentar o que tinha pela frente. Depois, temeroso, tracei uma grande circunferência em torno do lugar em que estava Madame Mina e, sobre ela, espalhei uma parte da hóstia, que eu pulverizara muito, de maneira que nenhum lugar da circunferência ficasse descoberto.
Madame Mina ficou sentada, durante todo aquele tempo, imóvel como se estivesse morta, e foi empalidecendo até se tornar mais pálida do que a neve; e não dizia uma palavra. Mas, quando me aproximei, ela se agarrou a mim, tremendo da cabeça aos pés.
- Não quer chegar até a fogueira? — perguntei-lhe desejando verificar o que ela podia fazer.
Ela levantou-se, mas, depois de dar um passo, parou.
- Por que não vem? — insisti.
Ela sacudia a cabeça e tornou a sentar-se onde estava.
- Não posso! — exclamou, depois.
Regozijei-me, pois o que ela não podia fazer nenhum daqueles de quem eu tinha medo poderia.
Embora houvesse perigo para seu corpo, sua alma estava salva!
Pouco depois, os cavalos começaram a relinchar e a empinar e tratei de acalmá-los.
Quando sentiram minhas mãos em seu pêlo, mostraram-se alegres e acalmaram-se, lambendo-me as mãos. Muitas vezes, durante a noite, o fato se repetiu.
Pela madrugada, a fogueira começou a apagar-se e fui atiçá-la, pois a neve estava começando a cair e o frio a apertar. No meio da escuridão, havia uma espécie de luz e a neve, ao cair, parecia assumir formas humanas, de mulheres arrastando vestidos compridos. O silêncio era quebrado apenas pelo relincho dos cavalos, que pareciam apavorados. Comecei a sentir medo, um medo terrível. Tive medo por Madame Mina, quando aqueles vultos malditos se aproximaram, rodando em torno. Olhei-a, mas ela estava calma, contemplando-me; como eu desse um passo em direção a fogueira, para avivá-la, ela me agarrou pelo braço, sussurrando como uma voz que a gente só ouve em sonhos, tão baixa era:
- Não! Não saia! Não saia! Aqui está em segurança! Encarei-a nos olhos e disse:
- Mas e a senhora? É pela senhora que tenho medo!
- Medo por mim? Por quê? Ninguém está mais em segurança no mundo que eu! — disse ela, soltando uma gargalhada, baixa, estranha.
Quando procurava refletir sobre a significação de suas palavras, um sopro de vento avivou as chamas e, à luz da fogueira, vi a mancha vermelha na testa da pobre moça.
Então, compreendi. De qualquer maneira, teria compreendido pouco depois, pois as figuras que giravam na névoa e na neve se aproximaram, mantendo-se, porém, sempre fora do círculo sagrado. E começaram a materializar-se até que vi as três mulheres que Jonathan tinha visto.
- Venha, irmã! Venha conosco! — gritavam.
Olhei para Madame Mina e senti uma alegria profunda, ao ver a repulsa, o terror, estampado em seus olhos. Graças a Deus, não era ainda delas!
E assim ficamos até o amanhecer, enquanto a neve caía. Eu me sentia abatido e amedrontado, mas quando o sol começou a subir pelo horizonte, tudo mudou. Aos primeiros alvores da aurora, as figuras malditas se dissolveram, num turbilhão de névoa e neve, que desapareceu, na direção do castelo.
Vendo que o amanhecer se aproximava, virei-me, instintivamente, para Madame Mina, disposto a hipnotizá-la, mas ela adormecera, de súbito, profundamente, e não consegui acordá-la. Fui ver os cavalos: todos estavam mortos. Tenho muita coisa que fazer hoje. Vou comer para me fortalecer bastante e depois, mãos à obra! Madame Mina continua a dormir. Graças a Deus, seu sono é calmo.
DIÁRIO DE JONATHAN HARKER
4 de novembro, à noite — O acidente com a lancha foi um golpe terrível para nós. Se não fosse isso, já teríamos alcançado o barco há muito tempo e minha querida Mina estaria livre. Não gosto nem de lembrar dela perto daquele lugar horrível. Arranjamos cavalos e estamos seguindo por terra. Escrevo enquanto Godalming faz os preparativos. Se ao menos Morris e Seward estivessem conosco!
DIÁRIO DO DR. SEWARD
5 de novembro — Ao amanhecer, avistamos o grupo de ciganos diante de nós, afastando-se do rio, cercando a carroça. Ao longo, ouviam-se uivos de lobos; a neve, que cai sem cessar, deve tê-los expulsado das montanhas e estamos rodeados por perigo de todos os lados.
MEMORANDO DO DR. VAN HELSING
5 de novembro, à tarde — Pelo menos, não estou louco. Devo agradecer a Deus esta graça, depois do que passei. Deixei Madame Mina dormindo dentro do círculo sagrado e tomei o rumo do castelo. O malho de que me muni em Veresti foi útil: com ele, arrombei todas as portas. Lembrando-me do diário de Jonathan, encontrei o caminho da capela. O ar estava poluído; parecia haver ali algum vapor sulfuroso, que, às vezes, me punha inteiramente tonto.
Lembrei-me, então, de Madame Mina e senti um aperto no coração. Não me atrevera a trazê-la àquele lugar, e a deixara protegida contra o Vampiro, naquele círculo sagrado; mas mesmo lá havia o perigo do lobo! Mas a tarefa que eu tinha de executar estava ali e, quanto aos lobos, tínhamos de nos resignar, se essa fosse a vontade de Deus.
Eu sabia que tinha de encontrar pelo menos três sepulturas — sepulturas habitadas.
Procurei e encontrei uma delas. Ali estava ela, em seu sono de vampiro, tão cheia de vida e voluptuosa beleza que estremeci lembrando-me que tinha ido para matar.
Sentia-me fascinado, sem dúvida, pela simples presença daquela mulher, embora estivesse numa sepultura estragada pelo tempo e coberta pelo pó dos séculos, e apesar do cheiro horrível que ali havia, como nos esconderijos do Conde. E eu, Van Helsing, com toda a minha resolução e todo o meu justificado ódio, senti-me imobilizado. Mas, através do espaço, veio um som, vibrante como o toque de um clarim, que me fez agir; pois era a voz de Madame Mina.
E eis-me de novo entregue à minha sinistra tarefa, arrombando outro túmulo de outra das irmãs, a outra morena. Não me atrevi a parar para olhá-la, como fizera com a primeira; e continuei procurando até que, pouco depois, encontrei, num túmulo grande e alto, a outra irmã loura que, como Jonathan, eu tinha visto se corporificar, saindo dos átomos da névoa. Tinha uma beleza tão radiosa que meu próprio instinto de homem me gritava para amá-la e protegê-la. Mas, Deus seja louvado, o gemido angustioso de Madame Mina não saíra de meus ouvidos; e, antes que o encantamento tivesse efeito sobre mim, eu tinha terminado o pavoroso trabalho.
Eu já procurara, então, todos os túmulos da capela e tinha visto apenas três daqueles fantasmas, durante a noite, pelo que deduzi que não havia mais Não-Mortos ali. Havia um grande túmulo, mais imponente que todos os outros. Nele havia apenas uma palavra:
DRÁCULA
Era, portanto, a casa do Não-Morto, do Vampiro-Rei, responsável por tantos outros. Antes de fazer voltar as mulheres à condição de mortas, com meu horroroso trabalho, espalhei sobre o túmulo de Drácula um pouco da Hóstia e assim o bani para sempre dali.
Depois começou minha medonha tarefa, e tive medo. Se fosse uma só, teria sido relativamente fácil. Mas três! Se tinha sido horrível com a encantadora Miss Lucy, que dizer com aquelas estranhas, que tinham sobrevivido durante séculos e se fortificado com a passagem dos anos e que, se pudessem, lutariam por sua vida?
Foi um trabalho de carniceiro, amigo John. Se eu não tivesse fortalecido meus nervos pela lembrança da outra morta, não teria ido adiante.
Graças a Deus, meus nervos não fraquejaram. Se não tivesse visto a expressão de repouso da primeira, e a alegria que demonstrou antes da dissolução final, revelando que a alma fora conquistada, eu não teria ido adiante em minha carnificina. Não poderia suportar as horríveis contorções, quando a estaca atravessou o peito, nem os lábios expelindo espuma sangrenta. Pobres almas! Agora sinto piedade delas, tão calmas se mostram no seu sono de morte, por um rápido momento, antes do desaparecimento final. De fato, amigo John, mal minha faca cortou a cabeça de cada uma delas, o corpo começou a se desmanchar e transformou-se em pó, como se a morte, que esperara tantos séculos, tivesse afinal proclamado: “Aqui estou!”
Antes de sair do castelo selei suas entradas, para que nunca mais o Conde ali penetrasse como Não-Morto.
Quando entrei no círculo onde Madame Mina estava dormindo, ela acordou e, ao me ver, gritou:
- Vamos sair deste lugar horrível! Vamos encontrar com meu marido, que, tenho certeza, está se aproximando de nós.
Estava pálida e fraca, mas seus olhos denotavam pureza e fervor.
E, cheio de esperança e confiança, porém, ao mesmo tempo, de medo, caminhamos para o nascente, para nos encontrarmos com nossos amigos, que Madame Mina tinha me dito saber que estavam se aproximando de nós.
DIÁRIO DE MINA HARKER
6 de novembro — A tarde já ia muito adiantada quando eu e o professor seguimos rumo ao nascente, por onde eu sabia que Jonathan estava vindo. Não caminhamos depressa, embora o caminho fosse em declive, pois estávamos levando peles, para nos proteger contra o frio, e provisões. Quando tínhamos caminhado cerca de uma milha, cansei-me e sentei- me. Olhamos para trás e vimos o castelo de Drácula recortando o céu, imponente sobre um precipício quase a pique. Ao longe, ouviam-se uivos de lobos. Estavam longe, mas seu rugido, mesmo chegando abafado pela neve que caía, era pavoroso.
Dentro em pouco, o professor que se adiantara, fez um sinal para mim e levantei-me indo me juntar a ele. Tinha descoberto um lugar maravilhoso, uma espécie de gruta na rocha, cuja entrada parecia uma porta. O professor colocou dentro da gruta as peles que tínhamos trazido e as provisões e me fez entrar. Insistiu comigo para comer, mas não consegui; a comida me causa repugnância. O professor tirou da caixa seu binóculo e ficou em pé no alto do rochedo, olhando o horizonte. De repente, gritou:
- Venha ver, Madame Mina!
Subi para junto dele, que me entregou o binóculo, apontando na direção correta. A neve estava caindo, e o vento a arrastava com força. Às vezes, porém, havia pausas no vento e eu podia ver um longo trecho do caminho. Além de um grande espaço coberto pela neve, pude ver um rio, que parecia uma fita escura. Bem em frente de nós, e não muito distante — de fato tão perto que fiquei admirada de não ter avistado antes — vinha um grupo de homens montados a cavalo, rodeando uma carroça. Pelas vestimentas, pareciam ciganos.
Sobre a carroça, havia uma grande caixa quadrada. Meu coração bateu furiosamente, ao avistar aquilo, pois compreendi que o fim estava se aproximando. A noite chegava e eu sabia que, quando o sol se escondesse, a “coisa” que ainda estava aprisionada na caixa adquiriria liberdade e poderia fugir à perseguição. Voltei-me para o professor, mas verifiquei, consternada, que ele não estava mais lá. Logo em seguida, eu o vi embaixo do rochedo, em torno do qual traçou um círculo, igual àquele dentro do qual eu me abrigara na noite anterior. Quando terminou, voltou para junto de mim e disse:
- Pelo menos, a senhora estará aqui livre dele! Tomou o binóculo de minhas mãos e exclamou:
- Veja. Estão vindo depressa; chicoteiam os cavalos e galopam com a maior velocidade que podem. Querem chegar antes do anoitecer. É possível que estejamos muito atrasados.
Uma rajada de neve encobriu o espaço diante de nós, mas passou dentro em pouco e outra vez o binóculo se fixou na planície. E, de súbito, um grito:
- Veja! Dois cavaleiros chegam do sul, a galope. Devem ser Quincey e John. Tome o binóculo e olhe antes da neve ocultar tudo.
Peguei o binóculo e olhei. Os dois homens podiam ser o Dr. Seward e o Sr. Morris. De qualquer maneira, eu sabia que nenhum deles era Jonathan. Ao mesmo tempo, sabia que Jonathan não estava longe; e, olhando em torno vi dois outros homens galopando a toda velocidade. Um deles eu sabia que era Jonathan e deduzi que o outro era Lord Godalming. Também eles estavam perseguindo o grupo de homens com a carroça. Quando contei ao professor, ele deu gritos de satisfação, como um menino, e, depois de olhar atentamente, até que a neve impediu a visão, preparou sua carabina. Eu tirei o revólver, disposta a utilizá-lo, também, pois, enquanto conversávamos, o uivo dos lobos estava se aproximando cada vez mais.
Quando a neve diminuiu por um momento, tornamos a olhar. Pelas encostas da montanha pontos escuros se moviam aos dois e três, ou mais: os lobos estavam se reunindo, para atacar sua presa.
Cada instante de espera parecia uma eternidade. O vento fazia a neve rodopiar e, às vezes, não enxergávamos um palmo diante do nariz e outras vezes nossa vista alcançava até longe. O sol descia no horizonte e o grupo de ciganos se aproximava.
De repente, duas vozes gritaram: “Alto!” Uma era de Jonathan, alta e emocionada; outra do Sr. Morris, calma e resoluta. Os ciganos podiam não entender a língua, mas o tom era inconfundível em qualquer língua em que a palavra fosse dita. Instintivamente, eles pararam e Lord Godalming e Jonathan aproximaram-se, a galope, de um lado, e o Dr.
Seward e o Sr. Morris de outro. O chefe dos ciganos, um homem de aspecto magnífico, que parecia um centauro, deu ordem a seus homens de prosseguirem a cavalgada e estes obedeceram; mas os quatro homens apontaram as carabinas e ordenaram, ameaçadoramente, que parassem. Os ciganos pararam de novo e o chefe lhes deu nova ordem. Cada um se muniu da arma de que dispunha, faca ou pistola, e preparou-se para a luta.
O chefe lançou o cavalo para a frente apontando primeiro para o sol — que estava quase atingindo o alto da montanha — depois para o castelo, disse alguma coisa que não pudemos compreender. Em resposta, nossos quatro companheiros apearam e avançaram contra a carroça. Eu devia ter tido um medo horrível de ver Jonathan correndo tal perigo, mas o ardor da batalha deve ter me empolgado como aos demais; não senti medo, mas apenas um desejo frenético de alguma coisa. O chefe dos ciganos deu uma ordem a seus homens, que imediatamente rodearam o carro, formando um muro difícil de ser transposto.
Vi Jonathan de um lado do círculo de homens e Quincey de outro, forçando passagem
para a carroça. A impetuosidade de Jonathan deu bom resultado e ele conseguiu galgar a carroça e, com força inacreditável, empurrou a grande caixa para o chão. Enquanto isto, o Sr. Morris tivera de empregar a força para romper o círculo dos ciganos. Enquanto eu, contendo a respiração, olhava para Jonathan, tinha, também, percebido o Sr. Morris avançar desesperadamente entre as facas dos ciganos e, quando chegou ao lado de Jonathan, que pulara da carroça, vi que apertava a ilharga com uma das mãos e que o sangue escorria entre seus dedos. Não se deteve, contudo, pois, enquanto Jonathan procurava, com desesperada energia, levantar, com seu facão, a tampa da caixa no lado de cima, ele atacou pelo outro lado, freneticamente. Sob os esforços conjuntos dos dois, a tampa da caixa foi aberta.
Enquanto isto, os ciganos, vendo-se ameaçados pelas carabinas de Lord Godalming e do Dr. Seward, tinham desistido de resistir. O sol estava quase se escondendo sobre os cumes da montanha e as sombras de todo o grupo caíam sobre a neve. Vi o Conde estendido dentro da caixa, sobre a terra, uma parte da qual se espalhara sobre ele, quando a caixa caíra da carroça. Estava mortalmente pálido, parecendo uma figura de cera e seus olhos vermelhos tinham aquela expressão horrível que eu conhecia tão bem.
E quando aquele olhos viram o sol que se punha, a expressão de ódio transformou-se numa expressão de triunfo.
Mas, naquele instante, o facão de Jonathan brilhou. Estremeci, ao vê-lo cortando o pescoço do Conde; ao mesmo tempo, a faca do Sr. Morris atravessou-lhe o coração.
Foi como um milagre; diante dos nossos próprios olhos, em menos de um segundo, todo o corpo se transformou em pó e desapareceu de nossa vista.
Enquanto viver, terei a alegria de lembrar que, no momento da dissolução final, houve no rosto do Conde uma expressão de paz como jamais supus que pudesse haver.
Os ciganos, ao verem o extraordinário desaparecimento do morto, fugiram, sem uma palavra. Os que estavam na carroça, gritavam aos outros que não os abandonassem, enquanto fugiam também. Os lobos, que tinham se mantido a certa distância, saíram atrás deles, deixando-nos livres.
O Sr. Morris, que tinha caído no chão, apoiou-se no cotovelo, com a mão apertando a ilharga; o sangue continuava a escorrer entre os seus dedos. Corri para junto dele, pois o círculo sagrado já não me detinha; o mesmo fizeram os dois médicos. Jonathan ajoelhou-se por trás dele e o ferido encostou a cabeça em seu ombro. Com um suspiro, Morris segurou minha mão com a sua que não estava suja de sangue. Deve ter visto a angústia estampada em meu rosto, pois sorriu, dizendo:
- Sinto-me feliz por ter sido útil! Meu Deus! — gritou, apontando para mim. — Vale a pena morrer para isso! Olhem!
O sol estava bem em cima do cume da montanha e seus raios caíam em cheio sobre meu rosto. Impulsivamente, os homens caíram de joelho, exclamando: “Amém”.
- Graças a Deus que tudo não foi em vão! — disse o moribundo. — Vejam! A neve não é mais imaculada que sua fronte! A maldição passou!
NOTA
Há sete anos atrás, todos nós atravessamos um inferno; e a felicidade de alguns de nós depois disso compensa, penso eu, tudo que sofremos. Eu e Afina sentimo-nos satisfeitos pelo fato do aniversário de nosso filho transcorrer na mesma data da morte de Quincey Morris. Sua mãe acredita, eu sei, que algo do espírito abnegado e bravo de nosso amigo passou para ele. Seu nome é uma homenagem a todo o nosso grupo de amigos; mas nós o chamamos de Quincey.
No verão deste ano, fizemos uma viagem à Transilvânia e percorremos os lugares tão cheios, para nós, de terríveis recordações. É quase impossível acreditar que o que vimos com nossos próprios olhos e ouvimos com nossos próprios ouvidos tenha sido verdade. Todos os seus traços desapareceram. O castelo continua como antes, erguendo-se sobre uma paisagem de desolação.
Ao regressarmos, falamos dos velhos tempos, de que podemos lembrar sem desespero, pois tanto Godalming como Seward estão casados e são felizes. Tirei os papéis do cofre, onde estavam encerrados desde nosso regresso, há tanto tempo.
Ficamos chocados com o fato de que, em todo esse material, dificilmente se encontra um documento autêntico; tudo se resume em papel datilografado, com exceção das últimas anotações feitas por mim, Mina e Seward e do memorando de Van Helsing. Não poderíamos exigir que alguém aceitasse tais documentos como prova de acontecimentos tão estranhos. Van Helsing resumiu tudo, ao dizer, enquanto carregava nosso filho nos joelhos:
- Não precisamos de provas; não pedimos a ninguém que nos acredite! Este menino saberá, algum dia, como sua mãe foi valente e corajosa. Já conhece sua dedicação e carinho; mais tarde, há de saber como alguns homens a amaram tanto que se atreveram a tais coisas para sua salvação.
JONATHAN HARKER
Indíce
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