Flores de Gelo: O império caído Capitulo 10 - Parte II
Dois anos haviam se passado, mas a dor da perda ainda permanecia viva e pulsante no coração de Victórya. Ela caminhava pela floresta, os pés descalços tocando a terra fria e macia, que parecia absorver sua tristeza a cada passo. O cesto em suas mãos estava quase vazio, exceto pelas flores que ela havia colhido: margaridas brancas, simples e
delicadas, mas com um significado profundo. Elas eram as favoritas de sua mãe, e Victórya as levava até o túmulo dela todas as semanas. Era a única maneira que ela sabia de manter a memória da mulher que chamou de mãe viva, de alguma forma.
A floresta estava silenciosa, exceto pelo suave farfalhar das folhas e o canto distante dos pássaros. O ar estava fresco, com a fragrância de musgo e umidade, que misturava-se ao cheiro das margaridas em seu cesto. Ao chegar a um pequeno campo coberto por flores, Victórya se ajoelhou, tocando suavemente as pétalas como se fosse algo sagrado. Ela fechou os olhos por um momento, permitindo-se sentir a presença de sua mãe, como se a brisa suave fosse um abraço de longe.
Mas, enquanto suas mãos tocavam as flores, uma sensação estranha e quente começou a percorrer sua pele. Victórya franziu a testa, seu corpo ficando tenso. A sensação não era exatamente dolorosa, mas estranha, como se algo estivesse acontecendo sem seu controle. Quando abriu os olhos, o que viu a fez parar por um segundo, incrédula.
Sua mão, que segurava uma margarida, parecia ter se transformado na própria flor. Sua pele havia se camuflado com as pétalas brancas, mesclando-se à cor da flor como se fosse uma extensão dela. O calor da transformação ainda pulsava por seus dedos, e por um instante, Victórya não conseguia entender o que estava acontecendo. Ela soltou a flor como se ela estivesse queimando, e sua mão voltou lentamente ao normal, mas a confusão a envolvia como uma neblina espessa.
— O que... o que foi isso? — sua voz saiu trêmula, como se palavras não fossem suficientes para expressar o medo que tomava conta de seu peito.
Ela olhou para as flores ao seu redor, sentindo o medo crescer. Seu coração batia acelerado, como se ela tivesse sido testemunha de algo que não deveria acontecer, algo além de sua compreensão. Sem pensar, se levantou rapidamente, seu cesto caindo ao chão. Seus pés a levaram até a pequena casa onde morava, mas a sensação de pânico
ainda a perseguiam. O que mais ela poderia fazer? O que mais poderia acontecer com ela?
Ao chegar em casa, a porta estava entreaberta, e Victórya mal teve tempo de se recompor antes de ouvir passos firmes se aproximando. Ela não precisou olhar para saber quem era. A sombra imponente de Blackstone, o proprietário do terreno, logo apareceu à sua frente.
— Victórya! — Sua voz grave cortou o ar, cheia de impaciência e desdém. — Onde está o dinheiro do aluguel?
Victórya engoliu em seco, seu corpo ainda abalado pela visão de sua mão. Tentou se concentrar, tentando encontrar a força necessária para lidar com a situação, mas sua mente estava um turbilhão.
— Eu... ainda não consegui juntar tudo. — Sua voz saiu fraca, mas ela tentou firmar os ombros. — Mas prometo que vou arrumar um jeito de pagar. Me dê mais alguns dias.
Blackstone riu com desdém, seus olhos afiados e frios como lâminas. Ele se aproximou dela com passos pesados, a presença dele sufocando qualquer tentativa de resistência. O cheiro de álcool e tabaco que ele exalava era nauseante.
— Promessas não pagam dívidas, garota. Já deixei você enrolar tempo demais. Se não tiver o dinheiro até o fim da semana, você sabe o que acontece.
As palavras dele ecoaram em sua mente como um grito, reverberando em seus ouvidos enquanto ela tentava não ceder ao pânico. Ela sabia o que ele significava. O que ele faria. Sua casa, sua mãe... tudo estava em risco. Ela olhou para ele, seus olhos cheios de uma frágil esperança, tentando encontrar uma saída.
— Por favor, só mais alguns dias... Eu vou conseguir, prometo.
Blackstone não respondeu, apenas olhou para ela com um sorriso cruel nos lábios. Então, antes de sair, ele lançou uma última ameaça.
— Não me faça voltar aqui com as mãos vazias. Se não me pagar, você vai se arrepender.
Ele se virou e saiu, batendo a porta com força, deixando Victórya sozinha, com o peito apertado de medo e impotência. Ela ficou ali, parada por alguns segundos, tentando processar o que havia acontecido. A sensação de estar sendo pressionada contra a parede, sem escapatória, era avassaladora. A raiva e o desespero a tomaram de assalto.
Ela deu um passo para trás e se jogou contra a parede, sentindo a dureza da superfície gelada contra suas costas. O impacto a fez deslizar até o chão, onde suas lágrimas começaram a cair incontroláveis. Ela se agarrou ao próprio corpo, como se pudesse se proteger de algo que não sabia o que era.
O tempo parecia parar enquanto ela chorava, soluçando com toda a dor que havia guardado por tanto tempo. Cada lágrima parecia carregar o peso das semanas, dos anos de luta e sofrimento. Sua mãe não estava mais lá para protegê-la, para dizer que tudo ficaria bem. Ela estava sozinha, perdida em um mundo que não parecia se importar com ela.
Quando finalmente parou de chorar, ficou ali, sentada no chão, olhando para sua mão, os dedos ainda trêmulos. O que havia acontecido com ela na floresta? O que foi aquilo? Seus pensamentos estavam em um turbilhão, tentando encontrar respostas para algo que parecia impossível de compreender. E, ao olhar para a mão que ainda parecia carregar a lembrança daquela transformação, uma única pergunta ecoava em sua
mente.
— O que sou eu agora?
Victórya ainda estava no chão, com a mente turvada pelos pensamentos e lágrimas que não cessavam. Ela estava tão imersa em sua dor, que mal percebeu os leves batidos na porta. A batida parecia vir de muito longe, quase como se fosse parte do próprio turbilhão em sua mente. Mas, conforme o som se repetia, ela levantou a cabeça, seus olhos ainda vermelhos de tanto chorar.
A pressão no peito era tão intensa que ela mal conseguia respirar. "Não... não agora", pensou, querendo estar sozinha, desejando que a dor pudesse ser um pouco mais tolerável.
Os batidos continuaram, mais insistentes, e, sem conseguir mais suportar, ela se levantou, ainda com as mãos tremendo. Foi até a porta com passos vacilantes, uma sensação de desespero dominando seus movimentos. Ela pensou que fosse Blackstone, vindo cobrar novamente o dinheiro que ela não tinha, e seus instintos de defesa a tomaram imediatamente.
Quando chegou à porta, gritou, já com a voz embargada:
— Vá embora, Blackstone! Eu não tenho o dinheiro! Não me amedronte mais!
Mas, ao abrir a porta, ela se deparou com algo completamente diferente. Em vez da figura imponente de Blackstone, ali estava Kikyo. Ela estava parada na entrada, com seu semblante sereno e os olhos verdes que sempre pareciam enxergar mais do que o normal. A Anciã usava um vestido simples, de tom terroso, mas o que mais chamava a atenção era a aura de calma que irradiava dela.
— Victórya, você está bem? — a voz suave de Kikyo rompeu a tensão no ar, como uma brisa fresca depois de uma tempestade.
Victórya piscou, surpresa e confusa. Ela olhou para Kikyo, completamente atordoada, como se seus olhos ainda não conseguissem compreender a realidade. A angústia no peito se intensificou com a presença dela, mas não por causa de Kikyo. A dor vinha da própria frustração de estar sendo confrontada naquele momento, de não saber como lidar com tudo o que estava acontecendo.
— Eu... eu pensei que fosse Blackstone... — a voz de Victórya saiu fraca e tremida, enquanto ela recuava um passo, sem saber o que fazer com a própria vulnerabilidade.
Kikyo, sem pressa, entrou na casa com uma calma que contrastava com o turbilhão interno de Victórya. Ela olhou para a jovem com um leve sorriso de compreensão, como se já soubesse o que a afligia.
— Ele ainda está te pressionando, não é? — Kikyo perguntou com uma serenidade que tocava o fundo do coração de Victórya, como se a simples presença da anciã pudesse aliviar um pouco da dor que ela sentia.
Victórya fechou os olhos, um nó se formando na garganta. Ela não queria mais mentir, não queria mais se esconder.
— Não sei o que fazer, Kikyo. Eu... eu não tenho o dinheiro. E ele... — sua voz quebrou, e as lágrimas ameaçaram cair novamente, mas ela forçou-se a segurá-las.
Kikyo deu um passo à frente, colocando uma mão gentilmente no ombro de Victórya. A
sensação de sua presença era reconfortante, e mesmo sem dizer uma palavra, ela parecia transmitir uma tranquilidade que contrastava com a dor latente da jovem.
— Eu sei que você está cansada. Eu sei que está lutando contra mais do que qualquer pessoa deveria. Mas você não está sozinha, Victórya. Eu estou aqui, e juntos podemos encontrar uma saída. Você não precisa enfrentar isso sozinha.
Victórya olhou para Kikyo, sentindo uma mistura de gratidão e desconforto. Ela queria acreditar naquelas palavras, queria acreditar que havia uma saída, mas sua mente estava cheia de dúvidas. Ela não sabia como sair dessa espiral de medo e insegurança. Seu olhar então caiu sobre sua mão, ainda marcada pela estranha transformação na floresta. Um sentimento de incerteza a envolvia.
— Eu... eu não entendo o que está acontecendo comigo. O que sou eu agora? — a pergunta saiu em um suspiro, mais para si mesma do que para Kikyo.
Kikyo a observou com compaixão, seus olhos verdes refletindo uma sabedoria tranquila.
— Você está mais forte do que imagina. Esses poderes... eles fazem parte de quem você é. Mas é importante que aprenda a controlá-los e a entender seu propósito. Não é algo que você deva temer, Victórya. Não deixe que o medo defina o que você pode ser.
As palavras de Kikyo penetraram profundamente no coração de Victórya. Pela primeira vez em muito tempo, ela sentiu uma chama de esperança acender dentro de si. Talvez, com a ajuda de Kikyo, ela poderia encontrar uma forma de lidar com seus poderes e, quem sabe, encontrar um caminho para a liberdade.
A dor ainda estava ali, mas havia algo mais agora — algo que lembrava que a jornada não estava acabada, e que a vida ainda tinha algo a oferecer, apesar dos desafios. Ela
não estava mais sozinha.
— Obrigada, tia.
Indíce
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