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Flores de Gelo: O império caído

Capítulos 39

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Flores de Gelo: O império caído Capitulo 10 - Parte III

5 anos atrás

Crystal

Crystal cresceu em um orfanato que parecia ter sido esquecido pelo mundo. As paredes eram frias e cinzentas, o cheiro de mofo impregnava o ar, e as crianças eram mais cruéis do que qualquer adulto que conhecera. Desde o início, ela era diferente. Sua pele alva, seus cabelos brancos como a neve e os olhos de um azul translúcido a tornavam alvo constante de piadas e zombarias.

— Olhem a fantasma! — gritavam as crianças, rindo enquanto puxavam seus cabelos ou a empurravam nos corredores.

Crystal se calava, apertando os livros contra o peito. Eles eram seu único refúgio, sua única companhia. Perder-se nas histórias de mundos mágicos e heróis era o que a mantinha de pé. Enquanto lia, podia fingir que era outra pessoa — alguém que não chorava escondida, que não sentia o peito apertar ao ouvir as risadas dos outros.

Tudo mudou quando Édric chegou. Ele tinha um sorriso caloroso, olhos brilhantes e uma

energia que parecia iluminar qualquer lugar. Diferente dos outros, ele não ria dela. Pelo contrário, era gentil. Ele se sentava ao seu lado na biblioteca, fazia perguntas sobre os livros que ela lia e até defendia Crystal quando as outras crianças começavam suas provocações.

— Deixem ela em paz, ok? Vocês não têm mais o que fazer? — ele dizia, com uma firmeza que fazia até os mais corajosos recuarem.

— Qual foi Édric, vai ficar defendendo essazinha? — Comentou um dos garotos.

— "Essazinha" tem nome, é Crystal. — Rebateu o ruivo.

— Pra nós é só uma pálida que não tem nada pra fazer. — Rebateu.

— Deixa prá lá, Édric. — Comentou Crystal timidamente.

— Isso não acabou por aqui. — Resmungou, puxando Crystal consigo.

Aos poucos, Crystal deixou que Édric entrasse em seu mundo. Ele parecia diferente, sincero. Era a primeira pessoa que não a fazia se sentir um monstro. Quando ele segurava sua mão ou olhava em seus olhos, Crystal sentia algo novo e quente crescer dentro de si.

— Você é especial, Crystal — Édric disse uma vez, sorrindo de um jeito que fez o coração dela disparar.

Ela acreditou nele. Começou a sonhar com um futuro onde não seria apenas a garota

estranha do orfanato. E, por um breve momento, ela foi feliz.

Mas tudo desmoronou numa noite silenciosa, quando ouviu risadas abafadas vindo do refeitório. Curiosa, aproximou-se devagar, escondendo-se atrás da porta.

— Vocês não vão acreditar como ela é ingênua! — Édric ria, acompanhado por um grupo de crianças. — Ela realmente acha que eu gosto dela. Foi tão fácil enganá-la.

— Você foi Ilário Édric, como aguentou esse tempo todo? — Respondeu o menino que sempre zombava de Crystal.

— Pensei no dinheiro que vocês iam me dar pela aposta. — Disse ele rindo.

Crystal sentiu o chão sumir sob os pés. As palavras perfuraram seu coração como lâminas afiadas. Era tudo uma mentira. As risadas ecoavam em sua mente, misturando- se com a dor e a humilhação.

Algo dentro dela quebrou naquele instante. Uma raiva profunda e gelada começou a crescer, alimentada por sua dor. Seus dedos tremiam, e o ar ao seu redor ficou subitamente mais frio. Ela tentou recuar, mas era tarde demais.

A temperatura caiu drasticamente, e o som das risadas foi substituído por gritos de pavor. Geada começou a se espalhar pelas paredes e pelo chão, enquanto cristais de gelo cresciam descontroladamente ao seu redor. As crianças tentaram correr, mas o frio era implacável.

Crystal não sabia como parar, ajoelhada no chão sem controle algum. As lágrimas escorriam por seu rosto, congelando antes de cair no chão. Quando finalmente tudo se

acalmou, ela abriu os olhos e viu o que havia feito. O orfanato inteiro estava coberto de gelo, os corpos das crianças e até dos cuidadores presos em estátuas cristalizadas.

No centro do refeitório, estava Édric, seu sorriso congelado para sempre em uma expressão de horror.

Crystal caiu de joelhos, horrorizada consigo mesma. Ela tentou gritar, mas nenhum som saiu. Tudo o que podia sentir era o peso esmagador da culpa e do arrependimento.

Ela fugiu naquela mesma noite, correndo para longe do que havia feito, do que havia se tornado. Por meses, vagou sem rumo, assombrada pelas memórias daquela noite. A cada passo, prometia a si mesma que jamais confiaria em alguém novamente.

Agora, Crystal é uma mulher reservada, sua seriedade uma máscara para esconder a dor e a culpa que ainda carrega. Seu poder é uma lembrança constante do que ela perdeu, mas também uma arma que aprendeu a controlar — porque, no fundo, ela acredita que pode usar sua magia para proteger os outros, mesmo que nunca consiga perdoar a si mesma.

💨

Três anos haviam se passado desde a noite em que Crystal congelou o orfanato. Três anos de solidão, culpa e constante fuga. Desde então, ela evitava se aproximar de vilas ou cidades grandes, temendo que alguém pudesse perceber sua estranheza ou, pior, reconhecer seu rosto nas histórias sombrias que circulavam sobre o "orfanato amaldiçoado".

Ela sobreviveu como pôde, vagando pelas florestas e montanhas, dormindo sob o céu

estrelado ou em cavernas gélidas. As noites eram silenciosas, mas nunca tranquilas. Os pesadelos a perseguiam, trazendo de volta os gritos e os olhares congelados das crianças que uma vez conheceu.

Crystal aprendeu a viver com pouco. Ela usava roupas simples e gastas, protegendo-se do frio que ironicamente parecia ser sua única companhia constante. Para sobreviver, caçava pequenos animais e colhia frutos, enquanto tentava entender o poder que carregava dentro de si. Durante os primeiros meses, sua magia era imprevisível, escapando em momentos de medo ou raiva, mas, aos poucos, ela começou a controlá- la. Experimentava sozinha, observando como o gelo se formava em suas mãos e aprendendo a moldá-lo em formas pequenas e precisas.

Um dia, enquanto vagava por uma região montanhosa, Crystal encontrou um pequeno vilarejo. Suas roupas estavam em frangalhos, e a fome a obrigou a descer até lá. O mercado local estava movimentado, e ela tentou se misturar, comprando um pouco de pão com as poucas moedas que havia encontrado em sua jornada. Mas os olhares curiosos logo recaíram sobre ela.

— Olhem para o cabelo dela! — alguém sussurrou.

— Ela parece uma assombração — murmurou outro.

Crystal sentiu a garganta apertar. Aquele momento lhe trouxe memórias dolorosas, e, antes que pudesse reagir, uma mulher mais velha se aproximou. Ela tinha cabelos ruivos e longos, amarrados em uma trança, e olhos verdes que pareciam enxergar através da alma de Crystal.

— Você está perdida, criança? — perguntou a mulher, com uma voz serena.

Crystal hesitou. A mulher parecia gentil, mas ela havia aprendido a não confiar em ninguém. Ainda assim, algo no olhar dela era diferente, quase acolhedor.

— Não tenho para onde ir — respondeu Crystal, com honestidade pela primeira vez em anos.

A mulher se apresentou como Kikyo, uma anciã da magia que estava de passagem pelo vilarejo. Ela parecia saber, de alguma forma, que Crystal era especial. Sem fazer perguntas diretas, Kikyo a convidou para acompanhá-la até uma vila escondida, onde outras pessoas com habilidades mágicas viviam em segurança.

Crystal hesitou, mas ao mesmo tempo, durante muitos anos, se sentiu compreendida. Ela aceitou ir, mas sempre atenta a qualquer tipo de traição.

Durante o caminho, Kikyo falava pouco, mas observava muito. Ela notou o jeito que Crystal se mantinha na defensiva, como se esperasse ser atacada a qualquer momento. Notou também a maneira delicada como ela usava sua magia para afastar ramos ou criar pequenos cristais de gelo quando se sentia ansiosa.

Ao chegar na vila, Crystal ficou sem palavras. Era um lugar isolado, rodeado por florestas densas, com casas simples e charmosas. A atmosfera era tranquila, mas carregava um ar de mistério. Kikyo apresentou Crystal a algumas das moradoras, incluindo Victórya, uma jovem extrovertida com cabelos volumosos e olhos dourados, e Heather, que imediatamente mostrou curiosidade em relação à nova chegada.

Naquela noite, enquanto o fogo crepitava em uma lareira aconchegante, Kikyo sentou-se com Crystal e, pela primeira vez, perguntou sobre seu passado. Crystal contou tudo, sua voz carregada de emoção, mas sem lágrimas. O peso da culpa era visível em seus olhos, e, ao terminar, ela se encolheu, esperando um julgamento.

Mas Kikyo não a condenou. Em vez disso, disse calmamente:

— Seu poder é grande, Crystal, e, sim, ele pode ferir. Mas também pode curar, proteger e trazer esperança. É isso que você deve aprender aqui.

Naquele momento, Crystal sentiu uma centelha de algo que não experimentava há anos: esperança. Ela não sabia se algum dia poderia se perdoar, mas talvez, ali, pudesse encontrar um novo propósito para sua magia e para sua vida.

A noite já havia caído, e a vila estava em um silêncio profundo, quebrado apenas pelo som das folhas balançando com o vento. Crystal caminhava pela trilha que levava até a casa de Kikyo, quando ouviu passos rápidos atrás de si. Virou-se e viu Heather, que vinha a passos largos, com aquele sorriso travesso no rosto.

— Ora, ora, se não é a nossa princesa do gelo! — Heather falou, o tom irônico inconfundível. Ela cruzou os braços, lançando um olhar curioso para Crystal. — Então, você realmente destruiu todo um orfanato, hein? Que tipo de história maravilhosa você tem para contar.

Crystal se encolheu, um pouco desconfortável. Ela não sabia como responder àquela pergunta direta e sem rodeios de Heather. Não era como se alguém estivesse interessado em sua história, e, pior ainda, ela não queria dar a impressão de que se sentia culpada. Mas a ironia de Heather, que parecia brincar com qualquer coisa, fez com que a tensão se aliviasse um pouco.

— Eu não queria fazer aquilo — Crystal respondeu, a voz baixinha, como se ainda estivesse tentando processar o peso do que acontecera.

Heather deu uma risada curta, quase zombando.

— Claro, claro… — ela colocou a mão no peito, fingindo surpresa. — Você, uma poderosa bruxa, perdendo o controle de seus próprios poderes e matando todo mundo sem querer. Muito convincente. Olha, se eu fosse você, teria dado umas boas gargalhadas depois de ver aqueles pirralhos congelados. Qual o problema de causar um pouco de caos, hein?

Crystal ficou em silêncio por um momento, olhando para o chão. Era uma resposta desconcertante. Ela não estava acostumada com essa visão de Heather, tão leve e, ao mesmo tempo, provocante.

— Não é assim que eu vejo... — começou Crystal, mas Heather levantou a mão para interrompê-la.

— Ah, por favor! — Heather se aproximou, com uma expressão exagerada. — Se eu tivesse o poder que você tem, ninguém passaria fome ou frio. Já pensou em fazer todo mundo pagar por todas as bobagens que dizem sobre a gente? Eu ia adorar congelar uns caras por aí.

Crystal olhou para Heather, surpresa, sem saber como responder. Ela sabia que Heather gostava de brincar e provocar, mas agora, algo nela parecia mais profundo. Ela podia ver que Heather, com toda sua irreverência, tinha uma forma de lidar com a dor que Crystal ainda não entendia.

— E você, não se arrepia? — Crystal perguntou, hesitante, sem saber se devia tocar nesse ponto.

Heather olhou para ela com uma expressão irônica, mas com um leve sorriso no canto

dos lábios.

— Arrepios? — Heather deu uma risadinha. — Olha, se eu tivesse o poder de deixar todo mundo congelado, você acha que eu me arrependeria? Claro que não. Não me entenderiam e eu não me importaria. Todo mundo deve aprender a dar valor ao que tem. Eu não sou de ficar lamentando o passado, Crystal. O que aconteceu, aconteceu. Não vai mudar. Mas você, por outro lado... sempre com essa carinha de quem acabou de perder a última bolacha do pacote. Já passou da hora de você entender o que é viver sem culpa.

Crystal a olhou em silêncio, absorvendo aquelas palavras. Ela sabia que Heather falava de um jeito provocador, mas havia algo de sábio nelas, algo que Crystal não sabia como lidar.

— Então você acha que eu deveria... — Crystal começou a dizer, mas Heather interrompeu novamente, desta vez com um sorriso mais suave.

— Eu acho que você deveria aprender a olhar para o que é bom. Se você realmente tiver que carregar esse poder, então que seja para algo mais interessante do que viver com culpa. Quem se importa com os erros? O que importa é o que você faz a partir deles. E, por favor, me diga, onde você ia esconder todos aqueles orfanatos congelados? — Heather deu um risinho. — Porque a gente precisaria de um bom estoque de picolés, né?

Crystal não conseguiu evitar um sorriso tímido, mesmo que ainda se sentisse um pouco desconfortável. Heather sempre tinha uma forma única de fazer as coisas parecerem mais leves.

— Você é uma louca. — Crystal disse, ainda sorrindo.

— E você, minha querida, precisa aprender a ser mais como eu — respondeu Heather, dando um tapinha amigável no ombro de Crystal. — Vamos, relaxa! Ninguém aqui vai te julgar. Afinal, quem nunca fez algo exagerado quando se sentiu sozinha? Só não vai congelar a gente, por favor. Eu gosto de poder andar sem escorregar no gelo.

As duas riram, e por um breve momento, Crystal se sentiu mais leve. Heather talvez fosse irreverente, mas de uma forma que a ajudava a ver a vida sob uma nova perspectiva. Ela ainda carregava as cicatrizes do passado, mas agora, pela primeira vez, sentia que poderia encontrar uma maneira de seguir em frente sem o peso esmagador


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